domingo, 16 de agosto de 2009

Bílis Negra


É isso o que eu ganho: o que eu perco. Resseco-me, definho-me e reduzo-me a cinzas. Quase me defronto com o nada que sou e por isso volto desesperado para o que não era, volto a ser a mesma ausência de mim, neste corpo que aos poucos desaparece. Dor e desespero se alternam, ainda poderia continuar me matando, insistir em lograr êxito, mas a morte me nega essa cortesia. Porque morrer não acomete quando se quer, mas quando se precisa, e mesmo achando que preciso e talvez não queira, sinto que existir me cabe quase como um vômito. [Cogito, ergo e sumo]
Esse existir dormente dói em mim. Dói a mesma dor que me deixou aqui sozinho. Veja, nem mesmo ela, essa dor miserável, que me levou a mutilar minha própria alma, já não se faz mais presente. Queria que ela estivesse aqui pra ver como dói não sentir dor. Pra ver que o vazio é doloroso, porque empurra, força, e acaba por preencher a alma com uma falta oceânica.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

5:13 A.M.- agora e na hora.

, mesmo sem querer. E quando voltava para si, reabria-se num lago enorme de águas apodrecidas, com cadáveres boiando (estaria ele também boiando ali?). Entra então numa pequena embarcação e sai afastando os mortos para poder navegar suave. Rema por incontáveis horas, mergulhando na névoa espessa adentro, não consegue enxergar nem quando fecha os olhos, seu pensamento soletra um inconsciente sombrio. A outra margem está lá, ele sabe, mas o barco não desliza sobre águas com facilidade. Estou nesse barco sentado ao lado de Metri e não há pesca. Eu sou o Peixe. Sua rede é fraca e possui buracos enormes, não existem pescados tão grandes nesse lago. Ele me olha e devolvo sua indagação silenciosa. Ele apenas existe, eu resisto em estar ali. Seguimos buscando outros pelo caminho que, como ele, anseiam chegar na outra margem. Era já madrugada. Selenia aparecia plena no reflexo, constante e clara. A água batia no casco espessa como a vida e o vento frio acariciava nossos rostos, trazendo uma mensagem de esperança. Metri às vezes parava de remar, cansado, respirava fundo e tossia. Não trocávamos uma palavra, mas dialogávamos com solilóquios gestuais e olhares furtivos. Ele dizia, eu compreendia. Eu o ensinava, ele fingia aprender. Eu insistia...Ele concordava, mas não cedia, e depois agia como se nunca houvesse escutado o que eu tinha dito. Eu estava presente o tempo todo, ele nem sempre. Eu era acessível e prontamente atendia a seus pedidos. Ele me buscava quando perdido e apenas me dirigia o olhar debaixo de desespero, e por cima. Eu não sabia mais o que fazer, mas sem saber o quê, continuava fazendo, quem sabe um dia eu acertasse, quem sabe um dia ele aprendesse, e já que estávamos no mesmo barco, alcançaríamos outras praias, contemplaríamos horizontes mais claros. Ele era um desolado e pensava que eu era apenas mais um que tentava; não sabia que eu tinha sido enviado especialmente para isso e que jamais voltaria de mãos vazias. Aprendi a querê-lo bem. Era ele quem tinha que agarrar os remos e mover-se, enquanto me ocupava em fazê-lo perceber que não ficaria à deriva, que naufragaria jamais, e que acaso isso ocorresse lá estava eu todo farol. Atracamos numa ilhota escondida e verde habitada por três irmãs: Valeria e Ana, gêmeas e Flora. Fizemos essa pequena escala a pedido de Metri, conhecidas de muito tempo dele. Alegou estar há dias sem maquear sua angústia com o hedonismo suicida de praxe e por isso ansiava estar na presença das três que o mimavam. Valeria e Ana, sempre letárgicas, desaceleravam partículas, mediavam sinapses, desconstruiam lentamente as torres da ansiedade. Flora repunha os humores e vibrações corporais em ordem, devolvia cores e odores à paisagem. Metri se deixava levar pelo embalo doce, pelo aroma plácido e telúrico, pelo sabor onírico que aquele pedaço de calma exalava. Aproveitava e desligava-se, depois abria as mãos e deixava tudo cair no chão. Dando as costas pro espelho, ia buscar outras ilhas. Não o quero por perto agora, Rhistoc, não me acompanhe, insisto, desça! Metri, antes de tudo existir, eu sou. escolhe onde queres ir, já estarei lá... Migramos por fim para um arquipélago pantanoso, onde centenas de indivíduos compartilhavam parasitismos variados. Aquilo sim era uma congestão de almas. Encadeadas pelo terror de estar e de não querer estar ali. Indecisas e perturbadas, movimentavam-se para ter a sensação de ainda estarem vivas e de que podiam ir a algum lugar. Iam e vinham e nunca chegavam. Encerravam-se em pequenas células sujas e quedavam por horas, dias naquela masturbação sem orgasmos - enganando, roubando, trocando, comprando, vendendo tudo o que viam pela frente e por trás também, tudo o que tinham e o que não tinham, como por exemplo, a própria vida. Isso tudo apenas por mais uma experiência pseudo-divina. Esse isso havia se transformado na razão de existir deles e aos poucos evoluía (involuía?) para vir a ser a razão de não mais existir também. Aquela ilusão era a ótica deles, aquilo era real? Metri nunca tinha visitado esse arquipélago, acaba de me dizer, mas sentia-se à vontade, pois o despadrão era o mesmo em todos os conjuntos de ilhas daquele tipo. Metri marcou o chão com um pedaço de carvão, urinou no poste, deixou-se saber a que tinha vindo. Reuniu alguns afins e instalou-se com eles num deslugar a desligar. Munido dos artefatos necessários: fogo, cinzas e um receptáculo, suava frio, tremia, ansiava pelo beijo morbígeno, queria se esvaziar por completo. O que estava pra acontecer não seria bom para ele, ele sabia, mas não se deseja algo apenas porque se pensa que aquilo é bom, avalia-se aquilo como bom justamente porque o se deseja. Organizou ritualisticamente os elementos, pôs em seus devidos lugares, teve uma ereção discreta, seu intestino sinalizou, aproximou o receptáculo da sua boca delicadamente, ateou fogo e trouxe tudo pra dentro de si... já não estava ali, não estava em lugar nenhum. E houve então um silêncio tão alto que até a molécula mais distante parou pra escutar. Ficou um tempo impreciso flutuando na mesma posição, a boca cheia d’água, a vista escurecendo, soltou tudo o que estava em suas mãos e desfaleceu. Foi o sussurro da morte, o beijo de boa-noite da deusa. Sobredosado, perdido em si mesmo, (ubi sum?), seu pneuma vagava. Não soltei sua mão e o agarrei pelos fios dourados que ainda o prendiam à matéria. Ele queria ir – não era esse o objetivo? Era o fim da sua busca metafísica, o início do encontro consigo mesmo e da sua maior decepção: não havia restado nada dele para que pudesse ser encontrado. O relógio ficou parado onde a soma era nove, o fim do ciclo, mesmo sendo incerto se haveria de começar outro, diferente ou não desse. E eis que depois de um largo tempo ele se recorda que não tinha nascido somente pra isso: morrer. A morte é uma consequência da vida (e também a causa?), mas querer morrer é antes de tudo o primeiro sinal de que já se está morto. Olhou para dentro de si e me viu esperando sua próxima tomada de atitude; estendeu a mão e saiu. Voltou a si, olhou o entorno, estava sozinho; todos fugiram apavorados. Acendeu a luz, lavou o rosto, sentiu-se assustado também com o pesadelo. Havia permanecido naquela ilha fazia dias, não conseguia sair dali. Continuava tendo encontros com a deusa, mesmo sem querer. E quando voltava para si, reabria-se num lago enorme de águas apodrecidas, com cadáveres boiando (estaria ele também boiando ali?).

terça-feira, 21 de julho de 2009

Escuto tudo o que ele acaba de dizer calado. Distancio-me e me envolvo nestes pensamentos, ele sabe que sou eu quem o influencio, eu sou essa cadência perene que o faz refletir. Ele me chama sem saber meu nome. Isso várias vezes durante o dia, sem ter certeza de que eu existo, sem se convencer de que o abstrato e o concreto se mesclam. Introduzo-me e tento entabular uma comunicação. Ele cético, tenta me explicar a dureza de se deparar com o que sempre idealizou, sem saber mesmo o quê e como e porquê. Que valha alguma coisa, é preciso. Sei que ele me busca, faina diuturna, deposita uma âncora teologal em mim. Não pretendo ser seu redentor. A fechadura está do lado de dentro dele, posso ajudar a forjar a chave, sê-la não. Era noite, e as sombras estavam deslocadas. Selenia escondida, nova, apenas seu espectro me teleguiava. Sussurrava que este seria um dos meus discentes preferidos, (ou o contrário?). Preconcebi o sujeito com um olhar tosco, reneguei levemente meu papel com obliquidade quase frívola, desdém. Rhistoc...Ai, Aleph, você de novo, dissociando-me. Assintonia insistente, pseudo-pedagogia imposta. E Selenia, e Aleph e quem mais? Tudo bem, estou aqui, o quê agora? Lembra-te... Ai, esse eco... Lembra-te pra que viestes... Compadeço-me. Preferia poder escolher, mas me impõem. Este é apenas um deles, haverá outros num total de doze... Doze? Por que doze? Doze não é um número, Rhistoc... Ah, não me venha, com essa voz modulada subconsciente, falando em símbolos! Exatamente, é um símbolo. O doze perfaz toda uma cosmogonia. Doze são as horas de Helios e de Selenia. Com a metade de doze foi criado o que existe e em seguida houve o descanso. Doze serão aqueles que haverás de encontrar e que irão te acompanhar... Observe, ele está em apuros, embriagou-se no ludíbrio da deusa. Está dividido agora, não tem rumo, apenas deseja sair dessa existência lúgubre. Sua vida é um pesadelo perpétuo. Viestes para clarear o horizonte deste e de tantos outros, para mostrar que a terra só está desolada, porque eles assim também estão. O Rei está ferido, mas não há o “Rei” isoladamente, o Rei são eles, ou/e está neles. Eles é que estão feridos. Tu co-participante da dor deles, tua ferida também está aberta. Tu cicatrizante das chagas deles, renasces com eles. E sabes, não há quem te busque que não te possa encontrar. Oh, humanidade, que busca ilógica! Estás o tempo todo neles, com eles. Basta que façam silêncio, basta que parem de dizer a verdade deles e comecem a escutar a tua. Basta que parem de te procurar onde nunca irão encontrar. Tua missão acaba de começar, Rhistoc, e quem pega no arado não deve olhar mais para trás, disto sabes tu. Prepara-te para o que vem a eito.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Pêndulo

De certo não se escolhe ficar enfermo, noutras vezes não há escolha. Pode-se escolher continuar doente; posso preferir, cônscio e alegando-me inconsciente, continuar sofrendo , posso gostar dessa paixão. A paixão que não avisa quando vem, a paixão que conforta e machuca. E também a paixão que ultrapassa os limites da lógica, parcialmente marcante, fanática e cega, dominadora. Assumo que escolhi cultuar a deusa, mas quão cego de antemão, de anteolhos ela me deixou, até mesmo para perceber que ela não era essa flor de cheiro doce ou que antes mesmo era, mas logo esse aroma apodrecia nas narinas, carcomia os alvéolos e dissolvia a alma. Não escolhi me apaixonar, caí doente de paixão, não escolhi essa paixão calvária. Verto-me agora indiferente e fugaz por carência de melhor opção, devo deixar de me sucumbir a essa flecha flamejante. Carente de dores, submeto-me: eu sei. Carente de bálsamo, desisto: não sei de mais nada. Meu único lenitivo é a esperança.
A deusa maldita me cansou. Deixou-me sem ânimo-anima-animus. Niilismo espiritual, aniquilamento somático. Devo extrair minha essência a partir desse vazio em que me transformei, no nada há tudo o que pode vir a ser, o começo está onde nada existe. Alguma coisa está provocando esse desvio de padrão no meu pensamento, alguma presença, algum fluido. Tenho sentidos o suficiente para perceber isso. Estaria esse estímulo fora ou dentro de mim, seria parte minha ou adventício?
Não quero mais me ater a essa filosofia de carrossel, sei que isso não há de parar, desliguem a tomada, verão que não pára. Rodando sempre e deixando-nos todos tontos e tolos. Antes-tolos, após-tolos da deusa. E de que me serve isso se não consigo descer dessa roda de cavalinhos, pior, jumentinhos, com todo respeito aos asininos. Não há a próxima parada, apenas roda, roda, roda a mesma paisagem, o mesmo cenário, não há novidade. De um salto poderia me arriscar. Preciso calcular a velocidade em que estou pra precisar o tamanho do tombo. E isso seria um anti-tombo, seria um cair pra cima. Por que então esse medo da ascensão? Sou um porco que retorna à lama após ter tomado banho? Claudico na linha grácil entre o sobejo da vida e o ordálio. Mas esse poder não vou usar mais contra mim, o mais fraco em mim que desista.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Enfermidade

Você que observa da plateia não sabe....aqui no palco é muito difícil... Mas me responda, pra mim que estou doente: se eu tivesse um câncer, você iria me abandonar?

domingo, 28 de junho de 2009

Intervalo doloroso: contemplação.

Como eu pude fazer aquilo de novo? Como eu pude arriscar tudo outra vez? Só tenho uma resposta para essas perguntas, e que eu seja perdoado por isso, não faz o menor sentido, mas gostaria de saber. Minha resposta é uma outra pergunta: Por que eu não posso?

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Relapso

Ele saiu apressado e crônico. Como se fosse cometer um crime que já se anunciara. Já estava previsto. Só ele não sabia ou fingia não saber. Todos liam e reliam em seu rosto aquilo que ele não se esforçava em esconder, embora fosse capaz de negá-lo instantaneamente. Esperava impaciente por aquele momento, já havia esperado o bastante. Mas a sua ansiedade não era denunciada: ele também não tinha certeza do que era iminente, mesmo que tudo só dependesse dele. Havia programado exatamente o que não queria. Toda a situação havia sido minunciosamente rejeitada. Como trazer tudo aquilo à beira do precipício e apenas ficar comtemplando? Era todo aquele esforço dolorosamente inútil? O que o fascinava mais? A trajetória da queda, o impacto no chão ou o momento anterior, quando o arranjo ainda permanece inquieto na borda do desastre esperando o inevitável, implorando para ser empurrado? Ele finalmente escolheu. Já eram muitos os seus dramas e pra quê mais esse. Não eram grandes as perdas, seriam? Não se pode medir o que se quer perder. Nada fazia mais sentido agora, apenas o desejo latejava. Tudo ao redor era de uma lentidão apavorante, à espera do instante seguinte. As pessoas estavam irritantemente alheias à catástrofe. Ninguém impedia o que estava pra acontecer, ninguém sequer percebia a grande explosão muda. Ele orava por um milagre que o tirasse dali, mas poderia lutar contra um monstro para ficar e executar o seu plano indigesto. Já não podia retroceder mesmo que pudesse. Desistir, nem tentar, estava fraco demais para desistir. Quem nunca estivera em tal situação que o dissesse, por favor, o que fazer. Ele já havia percorrido esse labirinto antes e, por isso mesmo, os corredores se confundiam e ele não conseguia sair. Estava hipnotizado pela certeza da derrota, impotente e inerte. Imóvel esperando, por saber que o que estava pra acontecer já era fato ocorrido, passado no futuro. Como evitar algo que já fazia parte do passado e ainda assim batia à porta? Como transformar em incerteza aquilo que gritava estampado em cada gesto seu de tentativa de negação ao seu desejo mais odioso? Por que desejar ardentemente o detestável?
Ele se atirou como um meteoro e nem assim fechou os olhos. Quis vislumbrar o que mais temia. Correu para o beijo da morte e experimentou tudo aquilo que sempre o causou imensa dor, com a excitação de um principiante, com a inocência perdida de um cão sem dono.

quarta-feira, 27 de maio de 2009


Mas agora é tempo de me lambuzar de humanidade, de medos, de dúvidas, de sentidos. Isso mesmo: sensações. Eis uma coisa que meu Pai, soberano criador de tudo o que existe, jamais conheceu. Esse é o grande diferencial do ser humano. E engana-se que o homem é menos por isso, não há nada mais divino que poder sentir. Os sentimentos e as sensações conferem divindade aos homens. Semi-deuses errantes que ainda não se deram conta do Deus que há neles, e, por isso, tendem a cultuar outros deuses que criam e recriam todos os dias: religiões, política, dinheiro. Um deus deve suprir todas as necessidades de quem o adora, e assim o homem vai criando tantos quantos ele necessite, como prolongamentos dele mesmo. Essa transigência persiste nesse mundo de dualidades, com consciência dicotômica generalizada. Esse mesmo homem quis ultrapassar as barreiras das percepções e sensações, querendo experimentar o espiritual sem precisar se desprender de sua matéria, daí surgiram deuses como a aquela deusa do Templo dos desolados. Uma deusa que vem fracionada, e que é processada, seja com fogo, seja com água. Sacrificada para extrair seu poder e poder-se experimentar. Vejo vários dependentes dessa deusa tirana e me compadeço. Vejo almas bipartidas, mergulhadas no mar da escuridão de suas (ir)realidades que elas mesmas desconhecem. Constantemente assombradas por demônios de nomes bastante familiares: o pânico, a paranóia, a miséria, a tristeza, o abandono, a violência, a mentira, o auto-engano, a solidão. Algumas pessoas mergulham tão profundamente no culto à deusa que chegam a se extinguir. Na fome de sorver o êxtase cedido são ceifadas, tragadas de sua própria existência, através de uma sobredose que não cabe simultaneamente num corpo que mal comporta a própria alma e tantos demônios convivendo juntos. Pela experiência da sobredose, a fronteira corpo-espírito é extrapolada, fazendo com que o espírito opte em deixar o soma e permaneça naquele estado que lhe é mais cômodo, agora livre dos demônios que o incomodavam. É ponto pacífico que existem outras maneiras de exorcisar esses demônios, mas o pior deles, o auto-engano, não permite que esse exorcismo aconteça, e o dependente dos favores da deidade percorre o corredor silencioso e lento ao encontro sobredosado que o levará a morte. Aproximo-me de um desses dependentes e escuto o que seus pensamentos dizem, percebo que ele está em luta consigo mesmo....

terça-feira, 26 de maio de 2009

Nova Ordem

Helios-fera, ex-fera, agora ocaso. Desceu ao encontro de Selênia e esta, furtiva para mais um turno notívago. Jazi no intervalo e baixei de volta ao inferno, onde os anjos caídos tentavam praticar boas ações para si mesmos e pra quem quer que surgisse. Olhei para o céu e vi que os astros giravam numa dança coletiva pagã, e uma gota de suor que sobrou deles cai lentamente em direção a minha cabeça, trazendo o reflexo do mundo inteiro. Encharco-me com o sentimento do mundo e tomo consciência do que a humanidade é através desse batismo. Não passo mais despercebido e me percebo nas pessoas também. Selênia me acompanha desde o alto e desce as escadas da madrugada, à medida que vai perdendo sua luminosidade emprestada. Aproxima-se de mim e tropeça. Estás mais caduca hoje, É estou minguando, e vês, aquelas estrelas estão festivas por isso, sobressaem-se nessa situação, bobas, dançam ao som minimalista do quantum. Escute, Rhistoc, o tempo passa e nada fizeste a favor do reino de teu Pai. Vai, recolhe os 12 elementos, ceia com eles. No final, verás que tua escolha, apesar de mal compreeendida, fará com que teu objetivo seja cumprido. Porém, apenas se fizeres a escolha acertada, se te deixares imolar. E assim ela se vai com esse mistério e Helios ameaça surgir mais uma vez - pensei: eles realmente governam mundos diferentes, diametralmente opostos, diria. Isso se repete infinitamente, desde que o reino é reino e me enfada um pouco. Talvez, por isso, haja sempre uma certa dualidade em tudo: o dia e a noite, o quente e o frio, o doce e o amargo, a dor e o prazer, o bem e o mal. Seria interessante se esses conceitos não fossem tão prefixados assim. Se a noite tivesse uma atmosfera diurna, se o amargo fosse adocicado em algumas bocas, se a dor trouxesse em si um certo prazer, se o bem não fosse necessariamente bom, e o mal não fosse de certo ruim. E tantas outras coisas não fossem o que elas conceitualmente são. Venho da parte de meu Pai, que é a quintessência do bem, mas quem definiu isso como bom e certo não foi ele. Inclusive porque o certo e o errado não existem, são apenas adequações a determinadas situações. Eu ou o meu Pai não temos a intenção, mas podemos ser um mal para algumas populações de nosso reino, sob algumas circunstâncias.
Selênia, como um oráculo, cega de tanto ser ofuscada e velha de tantos ciclos intermináveis, tonta de saber demais e de rotacionar, transladar, agora me revela que serei imolado. Eu não pensava em ter vindo a sacrifício. Não vim para isso, não quero ser esse cordeiro a ser sacrificado. Embora sacrifício não seja sinônimo de morte e morte não seja precisamente um fim trágico. A vida pode ser um sacrifício diário, viver é caminhar lentamente para a morte. Assim, eu declaro que todas as coisas sejam misturadas em seu conceitos e definições agora mesmo e que o nada seja tudo. Que todas as coisas que sabemos e as que não sabemos também não sejam mais aquilo que são e que jamais venham a ser algo. Deixe que as coisas tenham apenas seu valor momentâneo e que o que pareça ser na verdade não seja coisa alguma. Que a verdade como a tomamos não exista, para que também não haja mentira. Que aquilo que eu vejo e o que eu imagino se transformem no que eu quero, para que eu possa viver no sonho do impossível. Que o que é possível não passe de um mero devaneio, que a vida traga algo mais do que a morte e que a morte venha a ser o maior milagre da vida. Instituo, então, a não-criação. Não é que a partir de agora tudo venha deixar de existir, nem luz, nem trevas, nem dia nem noite. Eles ainda existem, apenas deixam de ser como os percebíamos, para que possamos enxergá-los como verdadeiramente são. Helios e Selênia fundidos, mas tão separados como sempre o foram. E nessa nova configuração de percepção do mundo, vou caminhando mais confortavelmente, e me vejo de pé sobre o mar de incertezas do homem. Apenas eu tenho essa capacidade de andar sobre as águas da existência humana, só eu consigo me subtrair daquilo que também sou: o homem.

sábado, 9 de maio de 2009

Heliosfera


Claridade, Helios veio, Selenia previu. Não se anunciou nem se apresentou, só me impôs sua presença cálida. Ele loiro, enlanguescido e alarmante. Eu ainda turvo e fosco, resquícios selênicos. Não tinha conseguido ainda me libertar da noite anterior. Pessoas ao acaso surgiram formando uma corrente contínua, alternando-se pelas artérias do reino. Eu imóvel, invisível, pondo minha vírgula em tudo. Incomodado com aquela marcha matutina frenética: pés, pernas, braços, pescoços, bocas, cabeças, pensamentos. Odores tácteis, barulhos aleatórios que compunham uma verve musical de tonalidades e cores neoplás(t)icas. Helios me presenteara com esse espetáculo através de sua facúndia muda, eu era todo sentidos. Paro, respiro e armazeno o segundo anterior. Anulo-me na paisagem: não sou mais nada. Já não o era mesmo antes, quando poucos não me percebiam. Agora, dissolvido naquele plural, significava existir-me menos ainda. Sou uma inexistência incômoda, sofrendo de uma dormência dolorosa. Um fractal suspenso no éter. E Helios irônico me empurrando tudo aquilo goela abaixo, esfregando no meu rosto, Toma que isso é teu, e eu peristáltico, quase regurgitando por não me caber mais. Não é nada disso meu, eu não inventei isso, Inventou sim e é assim grande parte por ti e para ti, Eu não vim para isso, eu vim para os desolados, cadê eles, E quem disse que não o são, sai dessa surpresa torpe e esmiuça essas almas esquartejadas, esses desertos sem horizontes, em cada um deles há um pedaço de terra desolada, mas também baús com tesouros e segredos sem limites, o reino do teu pai é mais abrangente do que imaginas. Estava tudo embaralhado ou eu me mesclara àquilo sobremaneira. Transigi em destacar o óbvio do essencial. Mirei atrás e o reino pelo qual eu vim se desvelou concomitante, deveras inserido nesse outro que acabara de ser mostrado a mim. Conviviam sem interferências mútuas, apenas com um lapso de tempo. Estaria a terra desolada atrasada, estaria a esfera de Helios na vangurada, quem o ou o quê havia perdido o referencial, seguiam aquelas pessoas indiferentes à minha análise temporal. Os desolados se permitiam ser deixados para trás, e Helios trazia sempre um novo amanhecer aos que não se deixavam abandonar nos braços da deusa. O feroz Cérbero grunhia sedento, cão bravo, e a deusa o acariciava; enquanto as almas abandonadas no si-mesmo, perdidas nos labirintos sombrios do inconsciente e autodolentes vagavam à deriva. Embora Helios ali onipresente e solícito, nada interessava a eles. A deusa os supria com a luz que os cegava e os aquecia com o inferno. Helios parecia não nascer para todos...
a continuación....

Plenilunio


Retornei a minha consciência e estava deitado sobre uma grama seca, pedregulhos, cheiro de terra. O céu sobre mim e várias nuvens, disformes e imaginativas, contornos suaves e claros que encobriam os astros. Tento me erguer sobre o peso doloroso de minhas articulações sem sucesso. Pensamentos, delírios, transe, passos... Um aroma metálico invade e quase desmaio, me consolo e espero. Levanta, ou a ordem vai carregar você. Mirei para o lado e uma figura andrógina, daquelas que você aposta contra a sua percepção e noção, me olhava quase com desdém. Levanta, a ordem já passa por aqui e arrasta quem estiver sobrando, eu sei. Peso, pressa, confiança em quem não se sabe, por que e pra quê, ordem.... Ora, mas não há ordem. E ainda essa. Caminhemos. Ela, digamos assim, segurava uma cajado e se locomovia com dificuldade. Esbarrava nas coisas como uma deficiente visual e respeitei seu ritmo cadente, enquanto fazia minha análise. Muito magra e velha, busto caído, roupa em farrapos, ágata-branca, várias cicatrizes por todo o corpo, cabelos longos e prateados, descalça, mãos enormes com unhas medonhas e voz grave, lupina. Possuia uma luz que parecia não vir dela mesma. Caminhava como se soubesse o que queria, mas eu não, eu não vou, não quero e ela me atrai com seu magnetismo, e eu não, Mas que sim, porque preciso te contar, Não preciso saber o que. Sou Selenia, se antecipou, antes mesmo que eu pensasse em querer saber, não importa quem sou mas o que posso ser pra ti, estendeu a mão trêmula e delgada. Ao tocar a minha, parou e sentou no chão perplexa. Estávamos no meio de uma das estradas desertas do reino. Devia ser muito tarde ou quase cedo, não havia mais aves noturnas, talvez as escondidas, e o vento frio, o pneuma gelando, e aquela mulher-homem nos meus pés, e eu sem querer estar ali e não se ouvia barulho, nem mesmo a sua respiração, e me imaginei num lugar ao redor do planeta, a girar com Selenia, embriagados em nossas órbitas intermitentes. Vieste afinal...tive que sair do meu lado sombrio e te alcançar, há vários ciclos te espero, estava cheia dessa demora, minguei, me esvaziei e agora me renovo com a tua chegada, saiba que tens uma missão, não desperdices o teu tempo, o meu já é curto e logo aquele mais forte me ofuscará, a noite é o meu domínio, fará hora de ir-me, poderás encontrar-me amanhã se necessitares, vem, temos muito o que compartilhar, Onde posso encontra-la, Aqui mesmo, ali, onde houver noite, Por que não ficas e conversaremos, Não posso, ele vem. Diga-me o que tens pra me dizer, quem tu és, O que sou jamais nasceu e jamais morrerá, tenho que partir, é cedo demais pra ficar e demorar... E com os raios primeiros da aurora, foi desaparecendo em direção ao nadir.




to be continued....


quinta-feira, 30 de abril de 2009

Mistérios Gozosos, Mistérios Dolorosos (TD, Pt.III)

Então era isso mesmo, uma deidade... Deusa-objeto de vidas abjetas. Sim, Rhistoc, a materialização de um poder espiritual. Toda existência, real ou imaginária, de imensa energia potencial espiritual é uma divindade, que, se não for reconhecida, é automaticamente inferiorizada, vindo a ser uma potestade perigosa. Tornando-se então uma ordem da contra-totalidade? Não, não existe contra-totalidade. O Todo é. Aquilo que não é, também O é. O que pode parecer o contrário dEle também é Ele. Todavia, alguns elementos da totalidade parecem vibrar diferente, ou talvez precisem agir dessa forma para equilibrar as vias da totalidade. É algo que compreenderás depois. Aquele Objeto em si é uma deidade, pois tem atributos para isso, porém se comporta como uma rainha tirana, que subjuga e explora seu súditos impiedosamente para se co-existir, retroalimentando-se com eles. No começo, aparenta ser uma deusa magnífica de promessas, uma grande mãe dadivosa. E ela não engana, não está mentindo. Porém o que ela tem a oferecer é de um valor pós-pago inexorável. A sua potência é prontamente disponibilizada, mas aqueles que bebem dessa fonte de energia ficam deveras sedentos. A deusa precisa manter-se vibrando no espaço-tempo. Ela precisa legitimar-se, ela sozinha não se basta, depende da experiência de um Canal, uma vida humana, que a utiliza como fonte de satisfação, destarte ela pode se manifestar dimensionalmente. Após se expressar plenamente via-Canal, via-crucis, ela absorve grande parte da energia vital do favorecido e então parece abandoná-lo por uns instantes... Mas, do contrário, agora estará mais presente do que antes, em intensa unidade com seu soma e aura. Assim, a coroa decai e então a anti-deusa surge onipresente em todos os hólons daquele que pensou haver obtido uma grande bênção divina. A dor, a angústia e o medo formam a verdadeira (anti)deusa triúna. Essa trindade devastadora apodera-se do Canal, numa união aparentemente perpétua, e o brinda com uma imensa taça vazia: a Sede por mais. Tudo o que resta ao Canal esgotado é uma enorme sequidão, que persiste até que ele copule novamente com a deusa. Ele não medirá esforços para beber do cálice vazio e ilusoriamente transbordante que a deusa suspende com as duas mãos. Dar-se-á um novo ciclo, e mais outro e mais outro... Existem vidas que passam vários períodos de tempo nesse carrossel triste e medonho, oscilando entre gozo e dor, êxtase e flagelo. Algumas almas parecem mesmo (sobre)viver experimentando essa dicotomia: sofrer e extasiar-se em excesso. Transbordando-se para transcender...
Estes são os ensinamentos que por hora te concedo. A propósito, poderás estar curioso sobre Minha presença, ou querer saber quem (ou o que) Sou. Sou sua supra-consciência. Sou o boi, Sou o arado. Sou Aleph. http://www.eon.com.br/unilae/unil502.htm

terça-feira, 28 de abril de 2009

Terra dos Desolados - Parte II

Todos se calaram e um silêncio doloroso tomou conta do lugar. Podia escutar uma sinfonia de batimentos cardíacos descompassados, acompanhados por respiros ofegantes. Ânsia e diligência se amalgamavam e era possível sentir a iminente torrente de sensações. O ser que detinha em mãos o objeto que lhe conferia poder sobre os demais retirou-o do seu envoltório com bastante ferocidade, rasgando o plástico com os caninos. Mas, logo, com delicadeza, depositou o artefato sobre uma rocha plana localizada bem próximo dele. O ritual ia começar. À medida que os preparativos prosseguiam, comecei a sentir que a minha percepção do mundo (ir)real ia se extinguindo, a ponto de não poder ver com clareza o que se passava. Uma névoa ou fumaça espessa invadiu o salão principal do Templo e, rapidamente, várias energias de baxa vibração começaram a se desprender das paredes sujas e rotas, do lixo amontoado, das fezes espalhadas e cobertas de moscas e de outras pestes e se agregavam ao grande círculo, envolvendo-o. Estes elementos esprituais tinham uma afinidade sôfrega em relação ao ritual e absorviam a energia que era emanada ou que era deixada escapar dele. Uma presença muito forte, quase divina se apoderou do espaço e deteve o tempo. Uma grande luz sem brilho. Estava tudo estático. Todas as formas, densidades e vibrações se desintegravam lentamente e já não se podia conceber mais nada. Foi a anulação de toda a existência, um vácuo, com tempo impreciso. Rhistoc, Rhistoc... escutava longe. Rhistoc você não devia... pelo menos nesse agora. Essa voz ecoava dentro de mim, não sabia de onde vinha. Já não me situava no Templo, disso tinha consciência, estava num não-lugar, e alguém ou algo me abordava. Eu interpelava sobre o que havia acabado de acontecer, porque fui repelido do Templo, e que artefato de tamanho magnetismo conseguia atrair tais energias de baixo nível e era capaz de gerar satisfação plena aos que, sem perceber, se fragmentavam. Era fácil perceber pedaços espalhados de memórias, de possibilidades, de realizações, de alegrias, de amores... Reconheci que, com essas vidas, uma extensa rede de relacionamentos, com prolongamentos e interdigitações numerosas, era enfraquecida, levada com a maré negra. Aos poucos, estas vidas se tornavam co-participantes da Grande Dor, não estavam doentes, apenas sintomáticas. A comunicação primordial e consciente era afetada em todas as configurações que os relacionamentos pudessem assumir, multilateralmente.
A deusa... a deusa, Rhistoc. Isso tudo é a deusa e advém dela...


continua....

domingo, 26 de abril de 2009

Terra dos Desolados

Infelizmente, não é o que se tem, nem o que se merece, mas o que se alcança, de uma maneira ou de outra, ou de diversas. Uma vez perdida a proteção do Rei...(oh, Ele está gravemente ferido) a terra ficou toda devastada. Não se escutam sequer os pensamentos, não existem pensamentos, não existem seres pensantes. Não sei como vim parar aqui, mas não foi pro Inferno que me mandaram. Vejo restos de sonhos espalhados por todos os lados, percebo que eles pisam neles, às vezes os despejam no chão e passam por cima, mesmo uns dos outros. Será mesmo que não importa o que está ali jogado, jogado já está. Mas está ao alcance da mão. Suas mãos em pedaços, estão segurando outros desejos, suas bocas tragam as próprias vidas e enquanto aspiram, se desvanecem... Saem a procura do impossível e almejam o que não se pode imaginar. Aqui encontrei a mais pura expressão de fé, a fé em seu estado primário. A antítese da fé: o medo. E esse medo não pode ser mensurado, não se tem medo de nada em toda parte, embora a atmosfera exale medo e terror pulsantes, o medo de não saber do que se tem medo. Pergunto o que aconteceu àquele lugar, àquelas pessoas, ninguem me responde, todos ensimesmados. Então consigo entender que todos estão constantemente buscando algo. Esse algo não é dado, nem se encontra facilmente na natureza como se alguém pudesse apenas ir lá e pegar. É preciso comprá-lo. É muito caro? Não, mas no final paga-se com a vida. É a prazo? Sim, o prazo é você quem faz. Vc pode pagá-lo agora com a sua vida, ou deixar pra ir acabando com ela aos poucos... Não entendi mais uma vez e fui atrás de um grupo que acabara de chegar com a compra desse objeto de desejo. Estavam muito eufóricos. Segui-os até a entrada do templo, e eis que me veio a pergunta: Eles iam sacrificar a vida de alguém nesse templo? Iam sacrificar com alguma arma que acabaram de comprar, o que viria a ser esse objeto de desejo? Apenas sabia que esse objeto era produzido em larga escala, porque eu via outros também saindo pra comprá-lo e voltando muito excitados também. Mas, após eles, resolvi entrar no templo e ver o que ia suceder... eram cinco homens e pelo que percebi apenas tinham conseguido dois exemplares desse objeto. O templo estava, como toda a cidade, em ruínas, mas ainda pior. Havia lixo, latas rasgadas, cinzas por toda parte. O cheiro não era de morte, era de pré-morte. A morte circundando o tempo todo. Pude ver o desejo dela em seus olhos vazios e sedentos. Os demais não a viam, embora sentissem a presença dela por ali, mas não davam importância. O objeto, o objeto! E todos sentaram sobre os entulhos, em círculo, esperando o ritual. Quem detinha o objeto em mãos detinha o poder, o respeito, a atenção e servidão dos demais. Fiquei olhando tudo aquilo de pé, mas ninguém me percebeu ali.

A continuación...To be continued... à Suivre... Continua....