terça-feira, 26 de maio de 2009

Nova Ordem

Helios-fera, ex-fera, agora ocaso. Desceu ao encontro de Selênia e esta, furtiva para mais um turno notívago. Jazi no intervalo e baixei de volta ao inferno, onde os anjos caídos tentavam praticar boas ações para si mesmos e pra quem quer que surgisse. Olhei para o céu e vi que os astros giravam numa dança coletiva pagã, e uma gota de suor que sobrou deles cai lentamente em direção a minha cabeça, trazendo o reflexo do mundo inteiro. Encharco-me com o sentimento do mundo e tomo consciência do que a humanidade é através desse batismo. Não passo mais despercebido e me percebo nas pessoas também. Selênia me acompanha desde o alto e desce as escadas da madrugada, à medida que vai perdendo sua luminosidade emprestada. Aproxima-se de mim e tropeça. Estás mais caduca hoje, É estou minguando, e vês, aquelas estrelas estão festivas por isso, sobressaem-se nessa situação, bobas, dançam ao som minimalista do quantum. Escute, Rhistoc, o tempo passa e nada fizeste a favor do reino de teu Pai. Vai, recolhe os 12 elementos, ceia com eles. No final, verás que tua escolha, apesar de mal compreeendida, fará com que teu objetivo seja cumprido. Porém, apenas se fizeres a escolha acertada, se te deixares imolar. E assim ela se vai com esse mistério e Helios ameaça surgir mais uma vez - pensei: eles realmente governam mundos diferentes, diametralmente opostos, diria. Isso se repete infinitamente, desde que o reino é reino e me enfada um pouco. Talvez, por isso, haja sempre uma certa dualidade em tudo: o dia e a noite, o quente e o frio, o doce e o amargo, a dor e o prazer, o bem e o mal. Seria interessante se esses conceitos não fossem tão prefixados assim. Se a noite tivesse uma atmosfera diurna, se o amargo fosse adocicado em algumas bocas, se a dor trouxesse em si um certo prazer, se o bem não fosse necessariamente bom, e o mal não fosse de certo ruim. E tantas outras coisas não fossem o que elas conceitualmente são. Venho da parte de meu Pai, que é a quintessência do bem, mas quem definiu isso como bom e certo não foi ele. Inclusive porque o certo e o errado não existem, são apenas adequações a determinadas situações. Eu ou o meu Pai não temos a intenção, mas podemos ser um mal para algumas populações de nosso reino, sob algumas circunstâncias.
Selênia, como um oráculo, cega de tanto ser ofuscada e velha de tantos ciclos intermináveis, tonta de saber demais e de rotacionar, transladar, agora me revela que serei imolado. Eu não pensava em ter vindo a sacrifício. Não vim para isso, não quero ser esse cordeiro a ser sacrificado. Embora sacrifício não seja sinônimo de morte e morte não seja precisamente um fim trágico. A vida pode ser um sacrifício diário, viver é caminhar lentamente para a morte. Assim, eu declaro que todas as coisas sejam misturadas em seu conceitos e definições agora mesmo e que o nada seja tudo. Que todas as coisas que sabemos e as que não sabemos também não sejam mais aquilo que são e que jamais venham a ser algo. Deixe que as coisas tenham apenas seu valor momentâneo e que o que pareça ser na verdade não seja coisa alguma. Que a verdade como a tomamos não exista, para que também não haja mentira. Que aquilo que eu vejo e o que eu imagino se transformem no que eu quero, para que eu possa viver no sonho do impossível. Que o que é possível não passe de um mero devaneio, que a vida traga algo mais do que a morte e que a morte venha a ser o maior milagre da vida. Instituo, então, a não-criação. Não é que a partir de agora tudo venha deixar de existir, nem luz, nem trevas, nem dia nem noite. Eles ainda existem, apenas deixam de ser como os percebíamos, para que possamos enxergá-los como verdadeiramente são. Helios e Selênia fundidos, mas tão separados como sempre o foram. E nessa nova configuração de percepção do mundo, vou caminhando mais confortavelmente, e me vejo de pé sobre o mar de incertezas do homem. Apenas eu tenho essa capacidade de andar sobre as águas da existência humana, só eu consigo me subtrair daquilo que também sou: o homem.

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