, mesmo sem querer. E quando voltava para si, reabria-se num lago enorme de águas apodrecidas, com cadáveres boiando (estaria ele também boiando ali?). Entra então numa pequena embarcação e sai afastando os mortos para poder navegar suave. Rema por incontáveis horas, mergulhando na névoa espessa adentro, não consegue enxergar nem quando fecha os olhos, seu pensamento soletra um inconsciente sombrio. A outra margem está lá, ele sabe, mas o barco não desliza sobre águas com facilidade. Estou nesse barco sentado ao lado de Metri e não há pesca. Eu sou o Peixe. Sua rede é fraca e possui buracos enormes, não existem pescados tão grandes nesse lago. Ele me olha e devolvo sua indagação silenciosa. Ele apenas existe, eu resisto em estar ali. Seguimos buscando outros pelo caminho que, como ele, anseiam chegar na outra margem. Era já madrugada. Selenia aparecia plena no reflexo, constante e clara. A água batia no casco espessa como a vida e o vento frio acariciava nossos rostos, trazendo uma mensagem de esperança. Metri às vezes parava de remar, cansado, respirava fundo e tossia. Não trocávamos uma palavra, mas dialogávamos com solilóquios gestuais e olhares furtivos. Ele dizia, eu compreendia. Eu o ensinava, ele fingia aprender. Eu insistia...Ele concordava, mas não cedia, e depois agia como se nunca houvesse escutado o que eu tinha dito. Eu estava presente o tempo todo, ele nem sempre. Eu era acessível e prontamente atendia a seus pedidos. Ele me buscava quando perdido e apenas me dirigia o olhar debaixo de desespero, e por cima. Eu não sabia mais o que fazer, mas sem saber o quê, continuava fazendo, quem sabe um dia eu acertasse, quem sabe um dia ele aprendesse, e já que estávamos no mesmo barco, alcançaríamos outras praias, contemplaríamos horizontes mais claros. Ele era um desolado e pensava que eu era apenas mais um que tentava; não sabia que eu tinha sido enviado especialmente para isso e que jamais voltaria de mãos vazias. Aprendi a querê-lo bem. Era ele quem tinha que agarrar os remos e mover-se, enquanto me ocupava em fazê-lo perceber que não ficaria à deriva, que naufragaria jamais, e que acaso isso ocorresse lá estava eu todo farol. Atracamos numa ilhota escondida e verde habitada por três irmãs: Valeria e Ana, gêmeas e Flora. Fizemos essa pequena escala a pedido de Metri, conhecidas de muito tempo dele. Alegou estar há dias sem maquear sua angústia com o hedonismo suicida de praxe e por isso ansiava estar na presença das três que o mimavam. Valeria e Ana, sempre letárgicas, desaceleravam partículas, mediavam sinapses, desconstruiam lentamente as torres da ansiedade. Flora repunha os humores e vibrações corporais em ordem, devolvia cores e odores à paisagem. Metri se deixava levar pelo embalo doce, pelo aroma plácido e telúrico, pelo sabor onírico que aquele pedaço de calma exalava. Aproveitava e desligava-se, depois abria as mãos e deixava tudo cair no chão. Dando as costas pro espelho, ia buscar outras ilhas. Não o quero por perto agora, Rhistoc, não me acompanhe, insisto, desça! Metri, antes de tudo existir, eu sou. escolhe onde queres ir, já estarei lá... Migramos por fim para um arquipélago pantanoso, onde centenas de indivíduos compartilhavam parasitismos variados. Aquilo sim era uma congestão de almas. Encadeadas pelo terror de estar e de não querer estar ali. Indecisas e perturbadas, movimentavam-se para ter a sensação de ainda estarem vivas e de que podiam ir a algum lugar. Iam e vinham e nunca chegavam. Encerravam-se em pequenas células sujas e quedavam por horas, dias naquela masturbação sem orgasmos - enganando, roubando, trocando, comprando, vendendo tudo o que viam pela frente e por trás também, tudo o que tinham e o que não tinham, como por exemplo, a própria vida. Isso tudo apenas por mais uma experiência pseudo-divina. Esse isso havia se transformado na razão de existir deles e aos poucos evoluía (involuía?) para vir a ser a razão de não mais existir também. Aquela ilusão era a ótica deles, aquilo era real? Metri nunca tinha visitado esse arquipélago, acaba de me dizer, mas sentia-se à vontade, pois o despadrão era o mesmo em todos os conjuntos de ilhas daquele tipo. Metri marcou o chão com um pedaço de carvão, urinou no poste, deixou-se saber a que tinha vindo. Reuniu alguns afins e instalou-se com eles num deslugar a desligar. Munido dos artefatos necessários: fogo, cinzas e um receptáculo, suava frio, tremia, ansiava pelo beijo morbígeno, queria se esvaziar por completo. O que estava pra acontecer não seria bom para ele, ele sabia, mas não se deseja algo apenas porque se pensa que aquilo é bom, avalia-se aquilo como bom justamente porque o se deseja. Organizou ritualisticamente os elementos, pôs em seus devidos lugares, teve uma ereção discreta, seu intestino sinalizou, aproximou o receptáculo da sua boca delicadamente, ateou fogo e trouxe tudo pra dentro de si... já não estava ali, não estava em lugar nenhum. E houve então um silêncio tão alto que até a molécula mais distante parou pra escutar. Ficou um tempo impreciso flutuando na mesma posição, a boca cheia d’água, a vista escurecendo, soltou tudo o que estava em suas mãos e desfaleceu. Foi o sussurro da morte, o beijo de boa-noite da deusa. Sobredosado, perdido em si mesmo, (ubi sum?), seu pneuma vagava. Não soltei sua mão e o agarrei pelos fios dourados que ainda o prendiam à matéria. Ele queria ir – não era esse o objetivo? Era o fim da sua busca metafísica, o início do encontro consigo mesmo e da sua maior decepção: não havia restado nada dele para que pudesse ser encontrado. O relógio ficou parado onde a soma era nove, o fim do ciclo, mesmo sendo incerto se haveria de começar outro, diferente ou não desse. E eis que depois de um largo tempo ele se recorda que não tinha nascido somente pra isso: morrer. A morte é uma consequência da vida (e também a causa?), mas querer morrer é antes de tudo o primeiro sinal de que já se está morto. Olhou para dentro de si e me viu esperando sua próxima tomada de atitude; estendeu a mão e saiu. Voltou a si, olhou o entorno, estava sozinho; todos fugiram apavorados. Acendeu a luz, lavou o rosto, sentiu-se assustado também com o pesadelo. Havia permanecido naquela ilha fazia dias, não conseguia sair dali. Continuava tendo encontros com a deusa, mesmo sem querer. E quando voltava para si, reabria-se num lago enorme de águas apodrecidas, com cadáveres boiando (estaria ele também boiando ali?).“Cada um de nós é um herói. Isso é um dote. Temos um chamamento para a aventura. Recusamos. Segue-se uma crise. Não podemos voltar atrás – e atendemos o chamado. Juntamos auxiliares, professores, guias. E cruzamos o limiar do desconhecido. Perdemos a nossa identidade e afundamos num abismo, no nadir, na barriga da baleia. E emergimos. Começamos a viajar de volta, para aquilo que conhecemos – cruzando de volta a fronteira. Nós voltamos. Transformados” (O Herói, de Joseph Campbell)
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
5:13 A.M.- agora e na hora.
, mesmo sem querer. E quando voltava para si, reabria-se num lago enorme de águas apodrecidas, com cadáveres boiando (estaria ele também boiando ali?). Entra então numa pequena embarcação e sai afastando os mortos para poder navegar suave. Rema por incontáveis horas, mergulhando na névoa espessa adentro, não consegue enxergar nem quando fecha os olhos, seu pensamento soletra um inconsciente sombrio. A outra margem está lá, ele sabe, mas o barco não desliza sobre águas com facilidade. Estou nesse barco sentado ao lado de Metri e não há pesca. Eu sou o Peixe. Sua rede é fraca e possui buracos enormes, não existem pescados tão grandes nesse lago. Ele me olha e devolvo sua indagação silenciosa. Ele apenas existe, eu resisto em estar ali. Seguimos buscando outros pelo caminho que, como ele, anseiam chegar na outra margem. Era já madrugada. Selenia aparecia plena no reflexo, constante e clara. A água batia no casco espessa como a vida e o vento frio acariciava nossos rostos, trazendo uma mensagem de esperança. Metri às vezes parava de remar, cansado, respirava fundo e tossia. Não trocávamos uma palavra, mas dialogávamos com solilóquios gestuais e olhares furtivos. Ele dizia, eu compreendia. Eu o ensinava, ele fingia aprender. Eu insistia...Ele concordava, mas não cedia, e depois agia como se nunca houvesse escutado o que eu tinha dito. Eu estava presente o tempo todo, ele nem sempre. Eu era acessível e prontamente atendia a seus pedidos. Ele me buscava quando perdido e apenas me dirigia o olhar debaixo de desespero, e por cima. Eu não sabia mais o que fazer, mas sem saber o quê, continuava fazendo, quem sabe um dia eu acertasse, quem sabe um dia ele aprendesse, e já que estávamos no mesmo barco, alcançaríamos outras praias, contemplaríamos horizontes mais claros. Ele era um desolado e pensava que eu era apenas mais um que tentava; não sabia que eu tinha sido enviado especialmente para isso e que jamais voltaria de mãos vazias. Aprendi a querê-lo bem. Era ele quem tinha que agarrar os remos e mover-se, enquanto me ocupava em fazê-lo perceber que não ficaria à deriva, que naufragaria jamais, e que acaso isso ocorresse lá estava eu todo farol. Atracamos numa ilhota escondida e verde habitada por três irmãs: Valeria e Ana, gêmeas e Flora. Fizemos essa pequena escala a pedido de Metri, conhecidas de muito tempo dele. Alegou estar há dias sem maquear sua angústia com o hedonismo suicida de praxe e por isso ansiava estar na presença das três que o mimavam. Valeria e Ana, sempre letárgicas, desaceleravam partículas, mediavam sinapses, desconstruiam lentamente as torres da ansiedade. Flora repunha os humores e vibrações corporais em ordem, devolvia cores e odores à paisagem. Metri se deixava levar pelo embalo doce, pelo aroma plácido e telúrico, pelo sabor onírico que aquele pedaço de calma exalava. Aproveitava e desligava-se, depois abria as mãos e deixava tudo cair no chão. Dando as costas pro espelho, ia buscar outras ilhas. Não o quero por perto agora, Rhistoc, não me acompanhe, insisto, desça! Metri, antes de tudo existir, eu sou. escolhe onde queres ir, já estarei lá... Migramos por fim para um arquipélago pantanoso, onde centenas de indivíduos compartilhavam parasitismos variados. Aquilo sim era uma congestão de almas. Encadeadas pelo terror de estar e de não querer estar ali. Indecisas e perturbadas, movimentavam-se para ter a sensação de ainda estarem vivas e de que podiam ir a algum lugar. Iam e vinham e nunca chegavam. Encerravam-se em pequenas células sujas e quedavam por horas, dias naquela masturbação sem orgasmos - enganando, roubando, trocando, comprando, vendendo tudo o que viam pela frente e por trás também, tudo o que tinham e o que não tinham, como por exemplo, a própria vida. Isso tudo apenas por mais uma experiência pseudo-divina. Esse isso havia se transformado na razão de existir deles e aos poucos evoluía (involuía?) para vir a ser a razão de não mais existir também. Aquela ilusão era a ótica deles, aquilo era real? Metri nunca tinha visitado esse arquipélago, acaba de me dizer, mas sentia-se à vontade, pois o despadrão era o mesmo em todos os conjuntos de ilhas daquele tipo. Metri marcou o chão com um pedaço de carvão, urinou no poste, deixou-se saber a que tinha vindo. Reuniu alguns afins e instalou-se com eles num deslugar a desligar. Munido dos artefatos necessários: fogo, cinzas e um receptáculo, suava frio, tremia, ansiava pelo beijo morbígeno, queria se esvaziar por completo. O que estava pra acontecer não seria bom para ele, ele sabia, mas não se deseja algo apenas porque se pensa que aquilo é bom, avalia-se aquilo como bom justamente porque o se deseja. Organizou ritualisticamente os elementos, pôs em seus devidos lugares, teve uma ereção discreta, seu intestino sinalizou, aproximou o receptáculo da sua boca delicadamente, ateou fogo e trouxe tudo pra dentro de si... já não estava ali, não estava em lugar nenhum. E houve então um silêncio tão alto que até a molécula mais distante parou pra escutar. Ficou um tempo impreciso flutuando na mesma posição, a boca cheia d’água, a vista escurecendo, soltou tudo o que estava em suas mãos e desfaleceu. Foi o sussurro da morte, o beijo de boa-noite da deusa. Sobredosado, perdido em si mesmo, (ubi sum?), seu pneuma vagava. Não soltei sua mão e o agarrei pelos fios dourados que ainda o prendiam à matéria. Ele queria ir – não era esse o objetivo? Era o fim da sua busca metafísica, o início do encontro consigo mesmo e da sua maior decepção: não havia restado nada dele para que pudesse ser encontrado. O relógio ficou parado onde a soma era nove, o fim do ciclo, mesmo sendo incerto se haveria de começar outro, diferente ou não desse. E eis que depois de um largo tempo ele se recorda que não tinha nascido somente pra isso: morrer. A morte é uma consequência da vida (e também a causa?), mas querer morrer é antes de tudo o primeiro sinal de que já se está morto. Olhou para dentro de si e me viu esperando sua próxima tomada de atitude; estendeu a mão e saiu. Voltou a si, olhou o entorno, estava sozinho; todos fugiram apavorados. Acendeu a luz, lavou o rosto, sentiu-se assustado também com o pesadelo. Havia permanecido naquela ilha fazia dias, não conseguia sair dali. Continuava tendo encontros com a deusa, mesmo sem querer. E quando voltava para si, reabria-se num lago enorme de águas apodrecidas, com cadáveres boiando (estaria ele também boiando ali?).
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Um comentário:
Nas intermitências da morte, alguém procura um eu fragmentado em outros devires. Quando o encontra, perde-se de si mesmo e dos outros. Às vezes, como acontece com Metri, decobre que a vida pede passagem para o Nada.
Vladimir Félix
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