terça-feira, 15 de março de 2016

Estava ele sentado, cabeça nos joelhos, mãos tocando os pés descalços, olhos perseguindo formigas. Mundo pequeno o seu, pensamentos vastos e perdidos. Sua visão ia além do que realmente enxergava, ele via com um coração doído. Aprisionado em si, não conseguia sair do chão e o tempo se arrastava. Junto-me a ele e sinto que ali há algo mais que uma simples criança abandonada e triste. Ele sequer reage com a minha presença. Indiferente, não reclama; a apatia o imobiliza, e eu permaneço. O seu mundo é da altura dos joelhos de quem passa à sua frente sem se importar com ele na calçada. Ele estende a mão para pedir. Pedir pra viver, pedir pra morrer. Porque viver e morrer já pareciam ser a mesma coisa. O que ele pede quase nunca o recebe. Se recebe, nem olha o que é e o joga numa caixinha. Há muito está ali. Desde que sua casa é a rua. Sentei ao seu lado e escutei: Pai? Digo eu: Não, não sou seu pai, nem seu irmão, nem nada. Nem sei por que estou aqui também sentado. Tentei: Você, o que faz aqui? Tenho pra onde ir não, você viu a minha mãe? Perdoe-me, não sei quem é. É... eu também não. E dizendo isso, abriu os olhos, levantou a cabeça, enxugou o suor da testa. Pegou um saco que continha uma substância amarela e viscosa e enfiou o nariz dentro. Respirou várias vezes. O saco enchia e secava ao ritmo de sua respiração. O cheiro era forte exalando da sua boca, quando ele resolveu me dizer que estava ali porque não queria mais sofrer nas mãos do homem com quem ele morava. Esse homem é seu pai? Não, eu também não conheço o meu pai. O que uma vez me disseram foi que o meu pai me vendeu pra esse homem, quando eu ainda era um bebê, por uma quantidade muito pequena daquilo que estava acabando com a vida dele, e logo depois morreu disso. Aquele homem era muito ruim comigo. As lágrimas escorreram. Helios observava tudo isso do alto e tratou de secá-las. Continuei sentado, vendo também o mundo pelos joelhos, ajoelhado em prece por aquela faísca de vida que insistia em manter-se acesa. Como se eu me calasse, prosseguiu. Falou que esse homem o apresentara àquilo que ele mais odeia e adora atualmente. Que era algo muito bom de sentir e que sempre queria mais. Se tinha fome, a fome passava; se estava com medo ou triste, tudo isso desaparecia. Sequer se sentia só quando usava aquilo, pois nem mesmo dele se lembrava. Com o passar do tempo, para conseguir mais, ele teve que trabalhar para esse homem. Levar pra lá, entregar ali, encomendas contadas. Mas o garoto sempre encontrava uma maneira de subtrair um pouco da mercadoria para seu consumo próprio, a recompensa pelo trabalho já não era suficiente. Esse homem tinha duas filhas das quais abusava de formas inúmeras. Quando da ausência delas, ele vinha pra cima do garoto. Sob ameaça, submetia-se a tudo o que o homem exigia; quando recusava, era castigado. Até que não suportou mais e fugiu de casa. Na rua, passou por várias dificuldades até aprender a sobreviver à companhia de outros tantos pés descalços. Sua vida passava despercebida e sem rumo. Não sabia muito bem quem ou o que era, de onde viera, mal sabia se existia. Sabia que de manhã acordava, andava, pedia, fugia e se escondia, às vezes comia ou dormia e não entendia como as pessoas se importavam tanto com uma coisa que de tão presente na sua vida já fazia parte dele sem incômodo: a angústia. Pobre criança a enfiar o rosto no saco para colorir o seu desespero. Ele pergunta, debatendo-se todo, se eu não estou sentindo os insetos subirem no meu corpo também. Que insetos? Ah, deixa pra lá! Fiquei intrigado com aquilo. Fiz um esforço para enxergar através de sua mente e deparei-me com um mundo criado para si. A atmosfera desse mundo estava impregnada com o odor da substância contida no saco, prendi a respiração, mas já era tarde.
Uma melodia me acariciou de longe, não conseguia escutá-la muito bem, era quase como um presságio. O menino dirige o olhar à copa de uma árvore altíssima e essa começa a se embalar com o vento. Ele sorri. A árvore sorri. Em seguida outra árvore ao lado desta faz o mesmo. E depois a seguinte e a outra e a outra. Logo estão várias árvores num balanço sincronizado gargalhando juntas, como se o vento suave as fizesse cócegas. O menino não consegue parar de rir com aquilo e eu também não consigo conter meu riso. Porém, há uma certa tristeza em tudo isso. É como se as árvores não estivessem rindo de alegres, mas sim debochando da situação burlesca do garoto, da sua risível mediocridade. Havia um sarcasmo patente naquele verde, um desdém saboroso de superioridade vegetal. Mas, poderia ser também que nada daquilo estivesse ocorrendo, ele devia saber. Por um instante ele duvida disso e se distrai. Tudo na vida agora faz um enorme sentido, até mesmo a sua miséria. Haveria de ser essa uma etapa necessária, um pré-requisito a sua evolução, houvera escolhido essa condição antes, segundos antes de vir à luz da vida? Essa escolha já se tornara realidade diária. E embora o machucasse, era isso o que deveria de ser, pois estar sentado no chão do mundo é conectar-se com ele, é entregar-se ao que tantos pisam, maltratam, queimam e destroem. E assumir a origem de seus componentes mais ínfimos, é estar perto do infinito. Num átimo, todo esse cenário de conexão com o cosmos começa a se fragmentar e a perder o brilho. As árvores voltam a ser sérias e inertes, o som emudece. Há um peso escuro sobre o garoto. Ele se vê novamente no chão, mas a sensação de pertencer não existe mais; o contrário: solidão e exclusão. Aquele odor forte da sacola persiste no seu hálito. Olhei as copas das árvores mais uma vez. Percebo aquela mesma energia que senti no templo espreitando por detrás das folhagens. Vejo os olhos malévolos da deusa vigiando mais uma vítima. Mas antes de eu arrancar as raízes que haviam se formado desde meus pés até as águas subterrâneas e de romper as hastes que brotavam de mim e se enroscavam no menino, sinto sua mãozinha gelada e delgada no meu braço e escuto baixinho e fraco: É igual a todos... já vai também, né. Pode ir, não tem quem aguente ficar mesmo. Mas, puxa, olha ali! Tem uma mulher lá correndo e um monte de gente disparado atrás dela. Ficamos olhando de longe aquela cena e de repente a mulher é alcançada pela multidão e várias pessoas ao redor dela a dominam e saem depois correndo, deixando-a deitada no meio da rua, os carros passando do lado, quase a atropelando. Rapidamente me projetei até ela. Devia possuir umas 3 décadas de vida, ruiva, magra, vestes mínimas, o rosto contra o chão, o sangue, a poça. Pessoas em volta, paradas, horrorizadas, mas sem ação, apenas olhando curiosas. Puxei-a pelo vermelho da sua cabeça, ela recupera a consciência, olha ao redor e para si, não sabe mais se o vermelho é cabelo ou sangue, não me percebe ali e grita: Velha malditaaaaa!

Ao meu toque na sua pele, tudo o que ela havia feito nesse dia até o momento do encontro fatal do seu rosto com as pedras do calçamento passou como um relâmpago na sua mente e consegui captá-lo: Já faz dois dias que tou aqui nesse inferno, que saco! Nan! Pensei em vir aqui só pra me desestressar um pouco, ando me sentindo muito impaciente, enjoada, uma vontade de provocar... Aquele idiota lá em casa que cuide do menino. Quando ele quer as coisas dele, ele num vai atrás? Que fique lá endoidando sozinho, ora. E eu aqui dois dias já nesse fim de mundo, sem comer, sem dormir, andando de barraco em barraco, vendo todo tipo de gente e coisa ruim. O que é que a gente não faz por essa merda, né? Ai, ai... mas desde que eu perdi o emprego e o gosto pela vida e passei a catar papelão pra sustentar o Vitin tem sido assim. Antes era a família completa, o carro, a casa boa. Mas aí fomos vendendo, trocando, perdendo de um tudo. No começo, não pensei que fosse acontecer com a gente não; mas o pior acontece assim, né, devagar, sem aviso. Quando a gente dá fé, tá lá um monte de merda na sua frente ou você dentro dela, sem ter como sair e se livrar disso. Agora tou aqui nessa prisão sem muro. Vocês repararam que desde ontem tem uma mulher negra muito estranha lá fora? Ei, agora sou eu, me dê o cachimbo! Pois é, ela tá lá caxingando, andando se segurando nos muros, nos postes, vomitando fumaça, puxando um cachorro grande e preto também com uma corrente enorme e grossa, preso com um cadeado, vocês viram? Fica o tempo todo falando, sem parar, umas coisas nada a ver, mas também com tom de ameaça, como se estivesse amaldiçoando. Ela o quê? Prevê o futuro? Eu bem que devia ter conhecido ela antes de ter me metido nessa, ela podia ter dito meu futuro, eu ia ficar sabendo e talvez desse pra evitar muita coisa, mas não, é a merda, é a merda. Podia também me dizer antes de eu ter visto aquele idiota lá em casa com aquela bichinha safada, magrela, de sobrancelha raspada. Três dias. Três dias trancados os dois no quartinho do lado, fumando, fumando, a fumaça no mundo, o cheiro já incomodando o povo que passava na rua, os vizinhos. Aí eu abro a porta duma vez e ele lá com o negócio dele na boca do viado, nem duro tava, e nem deu fé que eu tinha abrido a porta, virado uma mesinha, derrubado a vela, a lata e espalhado cinza pra todo lado. A bicha, em pânico, os olhos do tamanho de sem nem o quê, disse “ai meu Deus”, sabe, com aquela voz de travesti, nem grossa nem fina, “ain meun Deussss”, e o idiota todo lesado, nem aí, parecia anestesiado. Eu queria gritar, berrar, partir pra cima deles, mas me fiz de abestada também e falei: ei, o gás acabou, viu? E ele nem piscou os olhos, só disse “sai daí mulher”, um sai-daí-mulher assim fulminante. Eu gorda, mal-arrumada, desempregada, chamei o maluco mais doido da favela e ofereci o mesmo bujão de gás seco pelo que ele pudesse  arranjar pra mim da branquinha, viu? Na hora, dona Maria, taquí, já já venho pegar o botijão com um carrin de mão, tá? Entrei, sentei no caixote de madeira, peguei uma lata de refri seca, furei com um prego a lata, acendi um cigarro, esperei fazer cinza e fiz igualzinho como já tava feia de saber e de ver eles fazendo na minha frente. Pra me sentir igual a eles, pra ser como eles também, pra deixar de ser o que eu tava cansada de ser e de não ser. As crianças chorando e o mundo sumindo, desaparecendo, longe, longe e eu estatelada, muda, vesga, suada, pálida, petrificada e burra. A partir desse dia, passei a acompanhar ele em tudo, a dividir tudo e a brigar pelo menor pedacinho de tudo também. O viado? O viado pulou a janela, foi embora apavorada e ainda esqueceu essa blusinha aqui que eu tou vestindo. Enfim, dessa palhaçada de vida, só sobrou as paredes da casa, uma rede rasgada e um papelão que a gente faz de cama. E das seis crianças só restou uma, quatro o conselho tomou e outra acabou morrendo, a bichinha. A minha família não quer nem saber onde eu tou, acha que eu já morri ou prefere que eu tenha morrido. A dele mora longe e nem tem notícia. Ai, tou morta de calor, vou lá pra fora. Rapaz, olha só quem tá aqui bem na porta! Você carrega uma semente no seu ventre, moçinha. Endoidou, velha? sou nem planta! Carrega sim e não faz muito tempo que está aí na sua barriga não, ande me dê um trocado, minha linda, que eu lhe conto mais. Sai pra lá, coisa! não vem não que eu não tou boa! Que é isso, lindinha, chegue... Lindinha? eu toda desgrenhada, suja, só o esqueleto e horrorosa e essa aí com história de lindinha? já falei, sai daqui. Pois me dê um cigarro... Não, não, sai, vaza daqui caralho! E ela agarrada na minha blusa, Só um trago do seu! e eu Não, não, me largaaaa. E ela Me dáááá, e eu Nãããooooo!!! Finalmente a velha dispara: Pois hoje mesmo se tu não morrer vai chegar perto, viu? traste horroroso, fedido, tu vai ver só, diaba ruim, vai quebrar a cara no chão e sangrar feito uma galinha! Eu estátua, recebi o vômito daquela bruxa velha como uma saraivada de metralhadora, e com a fumaça ainda saindo do meu peito, atirei também: Morra você sua vaca preta e gorda, aliás, você já morreu, vá se enterrar urubu dos infernos! E dobrei o beco pra dar no barraco mais sujo e movimentado da favela, longe daquele corvo agourento.



quinta-feira, 24 de junho de 2010

Interlúdio

Metri já fazia parte de mim, conseguia acompanhá-lo mesmo distante. Enquanto ele não decidisse o que queria de verdade, eu não podia fazer muita coisa, (pra que é que eu sirvo mesmo?) Saio perambulando pelo reino e encontro um garotinho de aproximadamente 12 anos de idade, mas com o semblante deveras envelhecido e opaco, sofrido pela vida que levava.

domingo, 16 de agosto de 2009

Bílis Negra


É isso o que eu ganho: o que eu perco. Resseco-me, definho-me e reduzo-me a cinzas. Quase me defronto com o nada que sou e por isso volto desesperado para o que não era, volto a ser a mesma ausência de mim, neste corpo que aos poucos desaparece. Dor e desespero se alternam, ainda poderia continuar me matando, insistir em lograr êxito, mas a morte me nega essa cortesia. Porque morrer não acomete quando se quer, mas quando se precisa, e mesmo achando que preciso e talvez não queira, sinto que existir me cabe quase como um vômito. [Cogito, ergo e sumo]
Esse existir dormente dói em mim. Dói a mesma dor que me deixou aqui sozinho. Veja, nem mesmo ela, essa dor miserável, que me levou a mutilar minha própria alma, já não se faz mais presente. Queria que ela estivesse aqui pra ver como dói não sentir dor. Pra ver que o vazio é doloroso, porque empurra, força, e acaba por preencher a alma com uma falta oceânica.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

5:13 A.M.- agora e na hora.

, mesmo sem querer. E quando voltava para si, reabria-se num lago enorme de águas apodrecidas, com cadáveres boiando (estaria ele também boiando ali?). Entra então numa pequena embarcação e sai afastando os mortos para poder navegar suave. Rema por incontáveis horas, mergulhando na névoa espessa adentro, não consegue enxergar nem quando fecha os olhos, seu pensamento soletra um inconsciente sombrio. A outra margem está lá, ele sabe, mas o barco não desliza sobre águas com facilidade. Estou nesse barco sentado ao lado de Metri e não há pesca. Eu sou o Peixe. Sua rede é fraca e possui buracos enormes, não existem pescados tão grandes nesse lago. Ele me olha e devolvo sua indagação silenciosa. Ele apenas existe, eu resisto em estar ali. Seguimos buscando outros pelo caminho que, como ele, anseiam chegar na outra margem. Era já madrugada. Selenia aparecia plena no reflexo, constante e clara. A água batia no casco espessa como a vida e o vento frio acariciava nossos rostos, trazendo uma mensagem de esperança. Metri às vezes parava de remar, cansado, respirava fundo e tossia. Não trocávamos uma palavra, mas dialogávamos com solilóquios gestuais e olhares furtivos. Ele dizia, eu compreendia. Eu o ensinava, ele fingia aprender. Eu insistia...Ele concordava, mas não cedia, e depois agia como se nunca houvesse escutado o que eu tinha dito. Eu estava presente o tempo todo, ele nem sempre. Eu era acessível e prontamente atendia a seus pedidos. Ele me buscava quando perdido e apenas me dirigia o olhar debaixo de desespero, e por cima. Eu não sabia mais o que fazer, mas sem saber o quê, continuava fazendo, quem sabe um dia eu acertasse, quem sabe um dia ele aprendesse, e já que estávamos no mesmo barco, alcançaríamos outras praias, contemplaríamos horizontes mais claros. Ele era um desolado e pensava que eu era apenas mais um que tentava; não sabia que eu tinha sido enviado especialmente para isso e que jamais voltaria de mãos vazias. Aprendi a querê-lo bem. Era ele quem tinha que agarrar os remos e mover-se, enquanto me ocupava em fazê-lo perceber que não ficaria à deriva, que naufragaria jamais, e que acaso isso ocorresse lá estava eu todo farol. Atracamos numa ilhota escondida e verde habitada por três irmãs: Valeria e Ana, gêmeas e Flora. Fizemos essa pequena escala a pedido de Metri, conhecidas de muito tempo dele. Alegou estar há dias sem maquear sua angústia com o hedonismo suicida de praxe e por isso ansiava estar na presença das três que o mimavam. Valeria e Ana, sempre letárgicas, desaceleravam partículas, mediavam sinapses, desconstruiam lentamente as torres da ansiedade. Flora repunha os humores e vibrações corporais em ordem, devolvia cores e odores à paisagem. Metri se deixava levar pelo embalo doce, pelo aroma plácido e telúrico, pelo sabor onírico que aquele pedaço de calma exalava. Aproveitava e desligava-se, depois abria as mãos e deixava tudo cair no chão. Dando as costas pro espelho, ia buscar outras ilhas. Não o quero por perto agora, Rhistoc, não me acompanhe, insisto, desça! Metri, antes de tudo existir, eu sou. escolhe onde queres ir, já estarei lá... Migramos por fim para um arquipélago pantanoso, onde centenas de indivíduos compartilhavam parasitismos variados. Aquilo sim era uma congestão de almas. Encadeadas pelo terror de estar e de não querer estar ali. Indecisas e perturbadas, movimentavam-se para ter a sensação de ainda estarem vivas e de que podiam ir a algum lugar. Iam e vinham e nunca chegavam. Encerravam-se em pequenas células sujas e quedavam por horas, dias naquela masturbação sem orgasmos - enganando, roubando, trocando, comprando, vendendo tudo o que viam pela frente e por trás também, tudo o que tinham e o que não tinham, como por exemplo, a própria vida. Isso tudo apenas por mais uma experiência pseudo-divina. Esse isso havia se transformado na razão de existir deles e aos poucos evoluía (involuía?) para vir a ser a razão de não mais existir também. Aquela ilusão era a ótica deles, aquilo era real? Metri nunca tinha visitado esse arquipélago, acaba de me dizer, mas sentia-se à vontade, pois o despadrão era o mesmo em todos os conjuntos de ilhas daquele tipo. Metri marcou o chão com um pedaço de carvão, urinou no poste, deixou-se saber a que tinha vindo. Reuniu alguns afins e instalou-se com eles num deslugar a desligar. Munido dos artefatos necessários: fogo, cinzas e um receptáculo, suava frio, tremia, ansiava pelo beijo morbígeno, queria se esvaziar por completo. O que estava pra acontecer não seria bom para ele, ele sabia, mas não se deseja algo apenas porque se pensa que aquilo é bom, avalia-se aquilo como bom justamente porque o se deseja. Organizou ritualisticamente os elementos, pôs em seus devidos lugares, teve uma ereção discreta, seu intestino sinalizou, aproximou o receptáculo da sua boca delicadamente, ateou fogo e trouxe tudo pra dentro de si... já não estava ali, não estava em lugar nenhum. E houve então um silêncio tão alto que até a molécula mais distante parou pra escutar. Ficou um tempo impreciso flutuando na mesma posição, a boca cheia d’água, a vista escurecendo, soltou tudo o que estava em suas mãos e desfaleceu. Foi o sussurro da morte, o beijo de boa-noite da deusa. Sobredosado, perdido em si mesmo, (ubi sum?), seu pneuma vagava. Não soltei sua mão e o agarrei pelos fios dourados que ainda o prendiam à matéria. Ele queria ir – não era esse o objetivo? Era o fim da sua busca metafísica, o início do encontro consigo mesmo e da sua maior decepção: não havia restado nada dele para que pudesse ser encontrado. O relógio ficou parado onde a soma era nove, o fim do ciclo, mesmo sendo incerto se haveria de começar outro, diferente ou não desse. E eis que depois de um largo tempo ele se recorda que não tinha nascido somente pra isso: morrer. A morte é uma consequência da vida (e também a causa?), mas querer morrer é antes de tudo o primeiro sinal de que já se está morto. Olhou para dentro de si e me viu esperando sua próxima tomada de atitude; estendeu a mão e saiu. Voltou a si, olhou o entorno, estava sozinho; todos fugiram apavorados. Acendeu a luz, lavou o rosto, sentiu-se assustado também com o pesadelo. Havia permanecido naquela ilha fazia dias, não conseguia sair dali. Continuava tendo encontros com a deusa, mesmo sem querer. E quando voltava para si, reabria-se num lago enorme de águas apodrecidas, com cadáveres boiando (estaria ele também boiando ali?).

terça-feira, 21 de julho de 2009

Escuto tudo o que ele acaba de dizer calado. Distancio-me e me envolvo nestes pensamentos, ele sabe que sou eu quem o influencio, eu sou essa cadência perene que o faz refletir. Ele me chama sem saber meu nome. Isso várias vezes durante o dia, sem ter certeza de que eu existo, sem se convencer de que o abstrato e o concreto se mesclam. Introduzo-me e tento entabular uma comunicação. Ele cético, tenta me explicar a dureza de se deparar com o que sempre idealizou, sem saber mesmo o quê e como e porquê. Que valha alguma coisa, é preciso. Sei que ele me busca, faina diuturna, deposita uma âncora teologal em mim. Não pretendo ser seu redentor. A fechadura está do lado de dentro dele, posso ajudar a forjar a chave, sê-la não. Era noite, e as sombras estavam deslocadas. Selenia escondida, nova, apenas seu espectro me teleguiava. Sussurrava que este seria um dos meus discentes preferidos, (ou o contrário?). Preconcebi o sujeito com um olhar tosco, reneguei levemente meu papel com obliquidade quase frívola, desdém. Rhistoc...Ai, Aleph, você de novo, dissociando-me. Assintonia insistente, pseudo-pedagogia imposta. E Selenia, e Aleph e quem mais? Tudo bem, estou aqui, o quê agora? Lembra-te... Ai, esse eco... Lembra-te pra que viestes... Compadeço-me. Preferia poder escolher, mas me impõem. Este é apenas um deles, haverá outros num total de doze... Doze? Por que doze? Doze não é um número, Rhistoc... Ah, não me venha, com essa voz modulada subconsciente, falando em símbolos! Exatamente, é um símbolo. O doze perfaz toda uma cosmogonia. Doze são as horas de Helios e de Selenia. Com a metade de doze foi criado o que existe e em seguida houve o descanso. Doze serão aqueles que haverás de encontrar e que irão te acompanhar... Observe, ele está em apuros, embriagou-se no ludíbrio da deusa. Está dividido agora, não tem rumo, apenas deseja sair dessa existência lúgubre. Sua vida é um pesadelo perpétuo. Viestes para clarear o horizonte deste e de tantos outros, para mostrar que a terra só está desolada, porque eles assim também estão. O Rei está ferido, mas não há o “Rei” isoladamente, o Rei são eles, ou/e está neles. Eles é que estão feridos. Tu co-participante da dor deles, tua ferida também está aberta. Tu cicatrizante das chagas deles, renasces com eles. E sabes, não há quem te busque que não te possa encontrar. Oh, humanidade, que busca ilógica! Estás o tempo todo neles, com eles. Basta que façam silêncio, basta que parem de dizer a verdade deles e comecem a escutar a tua. Basta que parem de te procurar onde nunca irão encontrar. Tua missão acaba de começar, Rhistoc, e quem pega no arado não deve olhar mais para trás, disto sabes tu. Prepara-te para o que vem a eito.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Pêndulo

De certo não se escolhe ficar enfermo, noutras vezes não há escolha. Pode-se escolher continuar doente; posso preferir, cônscio e alegando-me inconsciente, continuar sofrendo , posso gostar dessa paixão. A paixão que não avisa quando vem, a paixão que conforta e machuca. E também a paixão que ultrapassa os limites da lógica, parcialmente marcante, fanática e cega, dominadora. Assumo que escolhi cultuar a deusa, mas quão cego de antemão, de anteolhos ela me deixou, até mesmo para perceber que ela não era essa flor de cheiro doce ou que antes mesmo era, mas logo esse aroma apodrecia nas narinas, carcomia os alvéolos e dissolvia a alma. Não escolhi me apaixonar, caí doente de paixão, não escolhi essa paixão calvária. Verto-me agora indiferente e fugaz por carência de melhor opção, devo deixar de me sucumbir a essa flecha flamejante. Carente de dores, submeto-me: eu sei. Carente de bálsamo, desisto: não sei de mais nada. Meu único lenitivo é a esperança.
A deusa maldita me cansou. Deixou-me sem ânimo-anima-animus. Niilismo espiritual, aniquilamento somático. Devo extrair minha essência a partir desse vazio em que me transformei, no nada há tudo o que pode vir a ser, o começo está onde nada existe. Alguma coisa está provocando esse desvio de padrão no meu pensamento, alguma presença, algum fluido. Tenho sentidos o suficiente para perceber isso. Estaria esse estímulo fora ou dentro de mim, seria parte minha ou adventício?
Não quero mais me ater a essa filosofia de carrossel, sei que isso não há de parar, desliguem a tomada, verão que não pára. Rodando sempre e deixando-nos todos tontos e tolos. Antes-tolos, após-tolos da deusa. E de que me serve isso se não consigo descer dessa roda de cavalinhos, pior, jumentinhos, com todo respeito aos asininos. Não há a próxima parada, apenas roda, roda, roda a mesma paisagem, o mesmo cenário, não há novidade. De um salto poderia me arriscar. Preciso calcular a velocidade em que estou pra precisar o tamanho do tombo. E isso seria um anti-tombo, seria um cair pra cima. Por que então esse medo da ascensão? Sou um porco que retorna à lama após ter tomado banho? Claudico na linha grácil entre o sobejo da vida e o ordálio. Mas esse poder não vou usar mais contra mim, o mais fraco em mim que desista.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Enfermidade

Você que observa da plateia não sabe....aqui no palco é muito difícil... Mas me responda, pra mim que estou doente: se eu tivesse um câncer, você iria me abandonar?