Estava ele sentado, cabeça nos joelhos, mãos tocando os pés
descalços, olhos perseguindo formigas. Mundo pequeno o seu, pensamentos vastos
e perdidos. Sua visão ia além do que realmente enxergava, ele via com um
coração doído. Aprisionado em si, não conseguia sair do chão e o tempo se
arrastava. Junto-me a ele e sinto que ali há algo mais que uma simples criança
abandonada e triste. Ele sequer reage com a minha presença. Indiferente, não
reclama; a apatia o imobiliza, e eu permaneço. O seu mundo é da altura dos
joelhos de quem passa à sua frente sem se importar com ele na calçada. Ele
estende a mão para pedir. Pedir pra viver, pedir pra morrer. Porque viver e
morrer já pareciam ser a mesma coisa. O que ele pede quase nunca o recebe. Se
recebe, nem olha o que é e o joga numa caixinha. Há muito está ali. Desde que
sua casa é a rua. Sentei ao seu lado e escutei: Pai? Digo eu: Não, não sou seu
pai, nem seu irmão, nem nada. Nem sei por que estou aqui também sentado.
Tentei: Você, o que faz aqui? Tenho pra onde ir não, você viu a minha mãe?
Perdoe-me, não sei quem é. É... eu também não. E dizendo isso, abriu os olhos,
levantou a cabeça, enxugou o suor da testa. Pegou um saco que continha uma
substância amarela e viscosa e enfiou o nariz dentro. Respirou várias vezes. O
saco enchia e secava ao ritmo de sua respiração. O cheiro era forte exalando da
sua boca, quando ele resolveu me dizer que estava ali porque não queria mais
sofrer nas mãos do homem com quem ele morava. Esse homem é seu pai? Não, eu
também não conheço o meu pai. O que uma vez me disseram foi que o meu pai me
vendeu pra esse homem, quando eu ainda era um bebê, por uma quantidade muito
pequena daquilo que estava acabando com a vida dele, e logo depois morreu
disso. Aquele homem era muito ruim comigo. As lágrimas escorreram. Helios
observava tudo isso do alto e tratou de secá-las. Continuei sentado, vendo
também o mundo pelos joelhos, ajoelhado em prece por aquela faísca de vida que
insistia em manter-se acesa. Como se eu me calasse, prosseguiu. Falou que esse
homem o apresentara àquilo que ele mais odeia e adora atualmente. Que era algo
muito bom de sentir e que sempre queria mais. Se tinha fome, a fome passava; se
estava com medo ou triste, tudo isso desaparecia. Sequer se sentia só quando
usava aquilo, pois nem mesmo dele se lembrava. Com o passar do tempo, para
conseguir mais, ele teve que trabalhar para esse homem. Levar pra lá, entregar
ali, encomendas contadas. Mas o garoto sempre encontrava uma maneira de
subtrair um pouco da mercadoria para seu consumo próprio, a recompensa pelo
trabalho já não era suficiente. Esse homem tinha duas filhas das quais abusava
de formas inúmeras. Quando da ausência delas, ele vinha pra cima do garoto. Sob
ameaça, submetia-se a tudo o que o homem exigia; quando recusava, era
castigado. Até que não suportou mais e fugiu de casa. Na rua, passou por várias
dificuldades até aprender a sobreviver à companhia de outros tantos pés
descalços. Sua vida passava despercebida e sem rumo. Não sabia muito bem quem
ou o que era, de onde viera, mal sabia se existia. Sabia que de manhã acordava,
andava, pedia, fugia e se escondia, às vezes comia ou dormia e não entendia
como as pessoas se importavam tanto com uma coisa que de tão presente na sua
vida já fazia parte dele sem incômodo: a angústia. Pobre criança a enfiar o
rosto no saco para colorir o seu desespero. Ele pergunta, debatendo-se todo, se
eu não estou sentindo os insetos subirem no meu corpo também. Que insetos? Ah,
deixa pra lá! Fiquei intrigado com aquilo. Fiz um esforço para enxergar através
de sua mente e deparei-me com um mundo criado para si. A atmosfera desse mundo
estava impregnada com o odor da substância contida no saco, prendi a
respiração, mas já era tarde.
Uma melodia me
acariciou de longe, não conseguia escutá-la muito bem, era quase como um
presságio. O menino dirige o olhar à copa de uma árvore altíssima e essa começa
a se embalar com o vento. Ele sorri. A árvore sorri. Em seguida outra árvore ao
lado desta faz o mesmo. E depois a seguinte e a outra e a outra. Logo estão
várias árvores num balanço sincronizado gargalhando juntas, como se o vento
suave as fizesse cócegas. O menino não consegue parar de rir com aquilo e eu
também não consigo conter meu riso. Porém, há uma certa tristeza em tudo isso.
É como se as árvores não estivessem rindo de alegres, mas sim debochando da
situação burlesca do garoto, da sua risível mediocridade. Havia um sarcasmo
patente naquele verde, um desdém saboroso de superioridade vegetal. Mas,
poderia ser também que nada daquilo estivesse ocorrendo, ele devia saber. Por
um instante ele duvida disso e se distrai. Tudo na vida agora faz um enorme
sentido, até mesmo a sua miséria. Haveria de ser essa uma etapa necessária, um
pré-requisito a sua evolução, houvera escolhido essa condição antes, segundos
antes de vir à luz da vida? Essa escolha já se tornara realidade diária. E
embora o machucasse, era isso o que deveria de ser, pois estar sentado no chão
do mundo é conectar-se com ele, é entregar-se ao que tantos pisam, maltratam,
queimam e destroem. E assumir a origem de seus componentes mais ínfimos, é
estar perto do infinito. Num átimo, todo esse cenário de conexão com o cosmos
começa a se fragmentar e a perder o brilho. As árvores voltam a ser sérias e
inertes, o som emudece. Há um peso escuro sobre o garoto. Ele se vê novamente
no chão, mas a sensação de pertencer não existe mais; o contrário: solidão e
exclusão. Aquele odor forte da sacola persiste no seu hálito. Olhei as copas
das árvores mais uma vez. Percebo aquela mesma energia que senti no templo
espreitando por detrás das folhagens. Vejo os olhos malévolos da deusa vigiando
mais uma vítima. Mas antes de eu arrancar as raízes que haviam se formado desde
meus pés até as águas subterrâneas e de romper as hastes que brotavam de mim e
se enroscavam no menino, sinto sua mãozinha gelada e delgada no meu braço e
escuto baixinho e fraco: É igual a todos... já vai também, né. Pode ir, não tem
quem aguente ficar mesmo. Mas, puxa, olha ali! Tem uma mulher lá correndo e um
monte de gente disparado atrás dela. Ficamos olhando de longe aquela cena e de
repente a mulher é alcançada pela multidão e várias pessoas ao redor dela a
dominam e saem depois correndo, deixando-a deitada no meio da rua, os carros
passando do lado, quase a atropelando. Rapidamente me projetei até ela. Devia
possuir umas 3 décadas de vida, ruiva, magra, vestes mínimas, o rosto contra o
chão, o sangue, a poça. Pessoas em volta, paradas, horrorizadas, mas sem ação,
apenas olhando curiosas. Puxei-a pelo vermelho da sua cabeça, ela recupera a
consciência, olha ao redor e para si, não sabe mais se o vermelho é cabelo ou
sangue, não me percebe ali e grita: Velha malditaaaaa!
Ao meu toque na sua
pele, tudo o que ela havia feito nesse dia até o momento do encontro fatal do
seu rosto com as pedras do calçamento passou como um relâmpago na sua mente e
consegui captá-lo: Já faz dois dias que tou aqui nesse inferno, que saco! Nan!
Pensei em vir aqui só pra me desestressar um pouco, ando me sentindo muito
impaciente, enjoada, uma vontade de provocar... Aquele idiota lá em casa que
cuide do menino. Quando ele quer as coisas dele, ele num vai atrás? Que fique
lá endoidando sozinho, ora. E eu aqui dois dias já nesse fim de mundo, sem
comer, sem dormir, andando de barraco em barraco, vendo todo tipo de gente e
coisa ruim. O que é que a gente não faz por essa merda, né? Ai, ai... mas desde
que eu perdi o emprego e o gosto pela vida e passei a catar papelão pra
sustentar o Vitin tem sido assim. Antes era a família completa, o carro, a casa
boa. Mas aí fomos vendendo, trocando, perdendo de um tudo. No começo, não
pensei que fosse acontecer com a gente não; mas o pior acontece assim, né,
devagar, sem aviso. Quando a gente dá fé, tá lá um monte de merda na sua frente
ou você dentro dela, sem ter como sair e se livrar disso. Agora tou aqui nessa
prisão sem muro. Vocês repararam que desde ontem tem uma mulher negra muito
estranha lá fora? Ei, agora sou eu, me dê o cachimbo! Pois é, ela tá lá
caxingando, andando se segurando nos muros, nos postes, vomitando fumaça,
puxando um cachorro grande e preto também com uma corrente enorme e grossa,
preso com um cadeado, vocês viram? Fica o tempo todo falando, sem parar, umas
coisas nada a ver, mas também com tom de ameaça, como se estivesse amaldiçoando.
Ela o quê? Prevê o futuro? Eu bem que devia ter conhecido ela antes de ter me
metido nessa, ela podia ter dito meu futuro, eu ia ficar sabendo e talvez desse
pra evitar muita coisa, mas não, é a merda, é a merda. Podia também me dizer
antes de eu ter visto aquele idiota lá em casa com aquela bichinha safada,
magrela, de sobrancelha raspada. Três dias. Três dias trancados os dois no
quartinho do lado, fumando, fumando, a fumaça no mundo, o cheiro já incomodando
o povo que passava na rua, os vizinhos. Aí eu abro a porta duma vez e ele lá
com o negócio dele na boca do viado, nem duro tava, e nem deu fé que eu tinha
abrido a porta, virado uma mesinha, derrubado a vela, a lata e espalhado cinza
pra todo lado. A bicha, em pânico, os olhos do tamanho de sem nem o quê, disse
“ai meu Deus”, sabe, com aquela voz de travesti, nem grossa nem fina, “ain meun
Deussss”, e o idiota todo lesado, nem aí, parecia anestesiado. Eu queria
gritar, berrar, partir pra cima deles, mas me fiz de abestada também e falei:
ei, o gás acabou, viu? E ele nem piscou os olhos, só disse “sai daí mulher”, um
sai-daí-mulher assim fulminante. Eu gorda, mal-arrumada, desempregada, chamei o
maluco mais doido da favela e ofereci o mesmo bujão de gás seco pelo que ele
pudesse arranjar pra mim da branquinha,
viu? Na hora, dona Maria, taquí, já já venho pegar o botijão com um carrin de
mão, tá? Entrei, sentei no caixote de madeira, peguei uma lata de refri seca,
furei com um prego a lata, acendi um cigarro, esperei fazer cinza e fiz
igualzinho como já tava feia de saber e de ver eles fazendo na minha frente.
Pra me sentir igual a eles, pra ser como eles também, pra deixar de ser o que
eu tava cansada de ser e de não ser. As crianças chorando e o mundo sumindo,
desaparecendo, longe, longe e eu estatelada, muda, vesga, suada, pálida,
petrificada e burra. A partir desse dia, passei a acompanhar ele em tudo, a
dividir tudo e a brigar pelo menor pedacinho de tudo também. O viado? O viado
pulou a janela, foi embora apavorada e ainda esqueceu essa blusinha aqui que eu
tou vestindo. Enfim, dessa palhaçada de vida, só sobrou as paredes da casa, uma
rede rasgada e um papelão que a gente faz de cama. E das seis crianças só
restou uma, quatro o conselho tomou e outra acabou morrendo, a bichinha. A
minha família não quer nem saber onde eu tou, acha que eu já morri ou prefere
que eu tenha morrido. A dele mora longe e nem tem notícia. Ai, tou morta de
calor, vou lá pra fora. Rapaz, olha só quem tá aqui bem na porta! Você carrega
uma semente no seu ventre, moçinha. Endoidou, velha? sou nem planta! Carrega
sim e não faz muito tempo que está aí na sua barriga não, ande me dê um trocado,
minha linda, que eu lhe conto mais. Sai pra lá, coisa! não vem não que eu não
tou boa! Que é isso, lindinha, chegue... Lindinha? eu toda desgrenhada, suja,
só o esqueleto e horrorosa e essa aí com história de lindinha? já falei, sai
daqui. Pois me dê um cigarro... Não, não, sai, vaza daqui caralho! E ela
agarrada na minha blusa, Só um trago do seu! e eu Não, não, me largaaaa. E ela
Me dáááá, e eu Nãããooooo!!! Finalmente a velha dispara: Pois hoje mesmo se tu
não morrer vai chegar perto, viu? traste horroroso, fedido, tu vai ver só,
diaba ruim, vai quebrar a cara no chão e sangrar feito uma galinha! Eu estátua,
recebi o vômito daquela bruxa velha como uma saraivada de metralhadora, e com a
fumaça ainda saindo do meu peito, atirei também: Morra você sua vaca preta e
gorda, aliás, você já morreu, vá se enterrar urubu dos infernos! E dobrei o
beco pra dar no barraco mais sujo e movimentado da favela, longe daquele corvo
agourento.
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