sexta-feira, 29 de maio de 2009

Relapso

Ele saiu apressado e crônico. Como se fosse cometer um crime que já se anunciara. Já estava previsto. Só ele não sabia ou fingia não saber. Todos liam e reliam em seu rosto aquilo que ele não se esforçava em esconder, embora fosse capaz de negá-lo instantaneamente. Esperava impaciente por aquele momento, já havia esperado o bastante. Mas a sua ansiedade não era denunciada: ele também não tinha certeza do que era iminente, mesmo que tudo só dependesse dele. Havia programado exatamente o que não queria. Toda a situação havia sido minunciosamente rejeitada. Como trazer tudo aquilo à beira do precipício e apenas ficar comtemplando? Era todo aquele esforço dolorosamente inútil? O que o fascinava mais? A trajetória da queda, o impacto no chão ou o momento anterior, quando o arranjo ainda permanece inquieto na borda do desastre esperando o inevitável, implorando para ser empurrado? Ele finalmente escolheu. Já eram muitos os seus dramas e pra quê mais esse. Não eram grandes as perdas, seriam? Não se pode medir o que se quer perder. Nada fazia mais sentido agora, apenas o desejo latejava. Tudo ao redor era de uma lentidão apavorante, à espera do instante seguinte. As pessoas estavam irritantemente alheias à catástrofe. Ninguém impedia o que estava pra acontecer, ninguém sequer percebia a grande explosão muda. Ele orava por um milagre que o tirasse dali, mas poderia lutar contra um monstro para ficar e executar o seu plano indigesto. Já não podia retroceder mesmo que pudesse. Desistir, nem tentar, estava fraco demais para desistir. Quem nunca estivera em tal situação que o dissesse, por favor, o que fazer. Ele já havia percorrido esse labirinto antes e, por isso mesmo, os corredores se confundiam e ele não conseguia sair. Estava hipnotizado pela certeza da derrota, impotente e inerte. Imóvel esperando, por saber que o que estava pra acontecer já era fato ocorrido, passado no futuro. Como evitar algo que já fazia parte do passado e ainda assim batia à porta? Como transformar em incerteza aquilo que gritava estampado em cada gesto seu de tentativa de negação ao seu desejo mais odioso? Por que desejar ardentemente o detestável?
Ele se atirou como um meteoro e nem assim fechou os olhos. Quis vislumbrar o que mais temia. Correu para o beijo da morte e experimentou tudo aquilo que sempre o causou imensa dor, com a excitação de um principiante, com a inocência perdida de um cão sem dono.

quarta-feira, 27 de maio de 2009


Mas agora é tempo de me lambuzar de humanidade, de medos, de dúvidas, de sentidos. Isso mesmo: sensações. Eis uma coisa que meu Pai, soberano criador de tudo o que existe, jamais conheceu. Esse é o grande diferencial do ser humano. E engana-se que o homem é menos por isso, não há nada mais divino que poder sentir. Os sentimentos e as sensações conferem divindade aos homens. Semi-deuses errantes que ainda não se deram conta do Deus que há neles, e, por isso, tendem a cultuar outros deuses que criam e recriam todos os dias: religiões, política, dinheiro. Um deus deve suprir todas as necessidades de quem o adora, e assim o homem vai criando tantos quantos ele necessite, como prolongamentos dele mesmo. Essa transigência persiste nesse mundo de dualidades, com consciência dicotômica generalizada. Esse mesmo homem quis ultrapassar as barreiras das percepções e sensações, querendo experimentar o espiritual sem precisar se desprender de sua matéria, daí surgiram deuses como a aquela deusa do Templo dos desolados. Uma deusa que vem fracionada, e que é processada, seja com fogo, seja com água. Sacrificada para extrair seu poder e poder-se experimentar. Vejo vários dependentes dessa deusa tirana e me compadeço. Vejo almas bipartidas, mergulhadas no mar da escuridão de suas (ir)realidades que elas mesmas desconhecem. Constantemente assombradas por demônios de nomes bastante familiares: o pânico, a paranóia, a miséria, a tristeza, o abandono, a violência, a mentira, o auto-engano, a solidão. Algumas pessoas mergulham tão profundamente no culto à deusa que chegam a se extinguir. Na fome de sorver o êxtase cedido são ceifadas, tragadas de sua própria existência, através de uma sobredose que não cabe simultaneamente num corpo que mal comporta a própria alma e tantos demônios convivendo juntos. Pela experiência da sobredose, a fronteira corpo-espírito é extrapolada, fazendo com que o espírito opte em deixar o soma e permaneça naquele estado que lhe é mais cômodo, agora livre dos demônios que o incomodavam. É ponto pacífico que existem outras maneiras de exorcisar esses demônios, mas o pior deles, o auto-engano, não permite que esse exorcismo aconteça, e o dependente dos favores da deidade percorre o corredor silencioso e lento ao encontro sobredosado que o levará a morte. Aproximo-me de um desses dependentes e escuto o que seus pensamentos dizem, percebo que ele está em luta consigo mesmo....

terça-feira, 26 de maio de 2009

Nova Ordem

Helios-fera, ex-fera, agora ocaso. Desceu ao encontro de Selênia e esta, furtiva para mais um turno notívago. Jazi no intervalo e baixei de volta ao inferno, onde os anjos caídos tentavam praticar boas ações para si mesmos e pra quem quer que surgisse. Olhei para o céu e vi que os astros giravam numa dança coletiva pagã, e uma gota de suor que sobrou deles cai lentamente em direção a minha cabeça, trazendo o reflexo do mundo inteiro. Encharco-me com o sentimento do mundo e tomo consciência do que a humanidade é através desse batismo. Não passo mais despercebido e me percebo nas pessoas também. Selênia me acompanha desde o alto e desce as escadas da madrugada, à medida que vai perdendo sua luminosidade emprestada. Aproxima-se de mim e tropeça. Estás mais caduca hoje, É estou minguando, e vês, aquelas estrelas estão festivas por isso, sobressaem-se nessa situação, bobas, dançam ao som minimalista do quantum. Escute, Rhistoc, o tempo passa e nada fizeste a favor do reino de teu Pai. Vai, recolhe os 12 elementos, ceia com eles. No final, verás que tua escolha, apesar de mal compreeendida, fará com que teu objetivo seja cumprido. Porém, apenas se fizeres a escolha acertada, se te deixares imolar. E assim ela se vai com esse mistério e Helios ameaça surgir mais uma vez - pensei: eles realmente governam mundos diferentes, diametralmente opostos, diria. Isso se repete infinitamente, desde que o reino é reino e me enfada um pouco. Talvez, por isso, haja sempre uma certa dualidade em tudo: o dia e a noite, o quente e o frio, o doce e o amargo, a dor e o prazer, o bem e o mal. Seria interessante se esses conceitos não fossem tão prefixados assim. Se a noite tivesse uma atmosfera diurna, se o amargo fosse adocicado em algumas bocas, se a dor trouxesse em si um certo prazer, se o bem não fosse necessariamente bom, e o mal não fosse de certo ruim. E tantas outras coisas não fossem o que elas conceitualmente são. Venho da parte de meu Pai, que é a quintessência do bem, mas quem definiu isso como bom e certo não foi ele. Inclusive porque o certo e o errado não existem, são apenas adequações a determinadas situações. Eu ou o meu Pai não temos a intenção, mas podemos ser um mal para algumas populações de nosso reino, sob algumas circunstâncias.
Selênia, como um oráculo, cega de tanto ser ofuscada e velha de tantos ciclos intermináveis, tonta de saber demais e de rotacionar, transladar, agora me revela que serei imolado. Eu não pensava em ter vindo a sacrifício. Não vim para isso, não quero ser esse cordeiro a ser sacrificado. Embora sacrifício não seja sinônimo de morte e morte não seja precisamente um fim trágico. A vida pode ser um sacrifício diário, viver é caminhar lentamente para a morte. Assim, eu declaro que todas as coisas sejam misturadas em seu conceitos e definições agora mesmo e que o nada seja tudo. Que todas as coisas que sabemos e as que não sabemos também não sejam mais aquilo que são e que jamais venham a ser algo. Deixe que as coisas tenham apenas seu valor momentâneo e que o que pareça ser na verdade não seja coisa alguma. Que a verdade como a tomamos não exista, para que também não haja mentira. Que aquilo que eu vejo e o que eu imagino se transformem no que eu quero, para que eu possa viver no sonho do impossível. Que o que é possível não passe de um mero devaneio, que a vida traga algo mais do que a morte e que a morte venha a ser o maior milagre da vida. Instituo, então, a não-criação. Não é que a partir de agora tudo venha deixar de existir, nem luz, nem trevas, nem dia nem noite. Eles ainda existem, apenas deixam de ser como os percebíamos, para que possamos enxergá-los como verdadeiramente são. Helios e Selênia fundidos, mas tão separados como sempre o foram. E nessa nova configuração de percepção do mundo, vou caminhando mais confortavelmente, e me vejo de pé sobre o mar de incertezas do homem. Apenas eu tenho essa capacidade de andar sobre as águas da existência humana, só eu consigo me subtrair daquilo que também sou: o homem.

sábado, 9 de maio de 2009

Heliosfera


Claridade, Helios veio, Selenia previu. Não se anunciou nem se apresentou, só me impôs sua presença cálida. Ele loiro, enlanguescido e alarmante. Eu ainda turvo e fosco, resquícios selênicos. Não tinha conseguido ainda me libertar da noite anterior. Pessoas ao acaso surgiram formando uma corrente contínua, alternando-se pelas artérias do reino. Eu imóvel, invisível, pondo minha vírgula em tudo. Incomodado com aquela marcha matutina frenética: pés, pernas, braços, pescoços, bocas, cabeças, pensamentos. Odores tácteis, barulhos aleatórios que compunham uma verve musical de tonalidades e cores neoplás(t)icas. Helios me presenteara com esse espetáculo através de sua facúndia muda, eu era todo sentidos. Paro, respiro e armazeno o segundo anterior. Anulo-me na paisagem: não sou mais nada. Já não o era mesmo antes, quando poucos não me percebiam. Agora, dissolvido naquele plural, significava existir-me menos ainda. Sou uma inexistência incômoda, sofrendo de uma dormência dolorosa. Um fractal suspenso no éter. E Helios irônico me empurrando tudo aquilo goela abaixo, esfregando no meu rosto, Toma que isso é teu, e eu peristáltico, quase regurgitando por não me caber mais. Não é nada disso meu, eu não inventei isso, Inventou sim e é assim grande parte por ti e para ti, Eu não vim para isso, eu vim para os desolados, cadê eles, E quem disse que não o são, sai dessa surpresa torpe e esmiuça essas almas esquartejadas, esses desertos sem horizontes, em cada um deles há um pedaço de terra desolada, mas também baús com tesouros e segredos sem limites, o reino do teu pai é mais abrangente do que imaginas. Estava tudo embaralhado ou eu me mesclara àquilo sobremaneira. Transigi em destacar o óbvio do essencial. Mirei atrás e o reino pelo qual eu vim se desvelou concomitante, deveras inserido nesse outro que acabara de ser mostrado a mim. Conviviam sem interferências mútuas, apenas com um lapso de tempo. Estaria a terra desolada atrasada, estaria a esfera de Helios na vangurada, quem o ou o quê havia perdido o referencial, seguiam aquelas pessoas indiferentes à minha análise temporal. Os desolados se permitiam ser deixados para trás, e Helios trazia sempre um novo amanhecer aos que não se deixavam abandonar nos braços da deusa. O feroz Cérbero grunhia sedento, cão bravo, e a deusa o acariciava; enquanto as almas abandonadas no si-mesmo, perdidas nos labirintos sombrios do inconsciente e autodolentes vagavam à deriva. Embora Helios ali onipresente e solícito, nada interessava a eles. A deusa os supria com a luz que os cegava e os aquecia com o inferno. Helios parecia não nascer para todos...
a continuación....

Plenilunio


Retornei a minha consciência e estava deitado sobre uma grama seca, pedregulhos, cheiro de terra. O céu sobre mim e várias nuvens, disformes e imaginativas, contornos suaves e claros que encobriam os astros. Tento me erguer sobre o peso doloroso de minhas articulações sem sucesso. Pensamentos, delírios, transe, passos... Um aroma metálico invade e quase desmaio, me consolo e espero. Levanta, ou a ordem vai carregar você. Mirei para o lado e uma figura andrógina, daquelas que você aposta contra a sua percepção e noção, me olhava quase com desdém. Levanta, a ordem já passa por aqui e arrasta quem estiver sobrando, eu sei. Peso, pressa, confiança em quem não se sabe, por que e pra quê, ordem.... Ora, mas não há ordem. E ainda essa. Caminhemos. Ela, digamos assim, segurava uma cajado e se locomovia com dificuldade. Esbarrava nas coisas como uma deficiente visual e respeitei seu ritmo cadente, enquanto fazia minha análise. Muito magra e velha, busto caído, roupa em farrapos, ágata-branca, várias cicatrizes por todo o corpo, cabelos longos e prateados, descalça, mãos enormes com unhas medonhas e voz grave, lupina. Possuia uma luz que parecia não vir dela mesma. Caminhava como se soubesse o que queria, mas eu não, eu não vou, não quero e ela me atrai com seu magnetismo, e eu não, Mas que sim, porque preciso te contar, Não preciso saber o que. Sou Selenia, se antecipou, antes mesmo que eu pensasse em querer saber, não importa quem sou mas o que posso ser pra ti, estendeu a mão trêmula e delgada. Ao tocar a minha, parou e sentou no chão perplexa. Estávamos no meio de uma das estradas desertas do reino. Devia ser muito tarde ou quase cedo, não havia mais aves noturnas, talvez as escondidas, e o vento frio, o pneuma gelando, e aquela mulher-homem nos meus pés, e eu sem querer estar ali e não se ouvia barulho, nem mesmo a sua respiração, e me imaginei num lugar ao redor do planeta, a girar com Selenia, embriagados em nossas órbitas intermitentes. Vieste afinal...tive que sair do meu lado sombrio e te alcançar, há vários ciclos te espero, estava cheia dessa demora, minguei, me esvaziei e agora me renovo com a tua chegada, saiba que tens uma missão, não desperdices o teu tempo, o meu já é curto e logo aquele mais forte me ofuscará, a noite é o meu domínio, fará hora de ir-me, poderás encontrar-me amanhã se necessitares, vem, temos muito o que compartilhar, Onde posso encontra-la, Aqui mesmo, ali, onde houver noite, Por que não ficas e conversaremos, Não posso, ele vem. Diga-me o que tens pra me dizer, quem tu és, O que sou jamais nasceu e jamais morrerá, tenho que partir, é cedo demais pra ficar e demorar... E com os raios primeiros da aurora, foi desaparecendo em direção ao nadir.




to be continued....